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O sexo dos anjos



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– Então você cresceu no Azul... 
– E você na Bêra do Rio, mas não é cria...
– Não sou? Cê tá de brincadeira... 
Os dois se olham fixamente. 
– Se liga, quando tinha operação era na porta de casa,  jogavam granada e tudo... 
– Tá, na Bêra eu via os traçantes passando na janela, morava no quinto andar... 
– No Azul tentavam esconder arma na lage, minha mãe discutia com os Meninos: "Olha minha filha aí, aqui não!" 
– Na Bêra, quando deviam na boca, eles amarravam cada mão num cavalo e arrastavam até o Pontilhão... 
– E lá em cima no Azul picavam, era um serrote cego, botavam num carrinho de mão... 
– É mesmo? Pois, se chegavam vivos no Pontilhão, enfiavam dentro de uns pneus e tocavam fogo, bem na travessia para o Brizolão! 
– Mas quando matavam o chefe do morro, arrancavam a cabeça lá encima, na Glória, e saiam desfilando com a cabeça, acho que o último lugar que via era na Bêra... 
– Impossível! Para de caô! 
Os dois se olham e dão de ombros. 
– Hoje esses Meninos não são de nada, não respeitam ninguém... 
– Concordo, época boa já foi, a do Lambari! 
– Lambari? O Vado foi muito melhor!... 
Entardece em nuvens pesadas de chumbo lentamente, 
que logo logo chove. 

O Movimento contra Ozomi



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Soltaram fogos como alerta
numa tardinha de quinta-feira
e os Meninos do Movimento
com suas armas, com seus reflexos, 
correram becos, abandonaram
seus chinelos, seus postos, suas bancas, 
para responder à altura, 
porque lá vem Ozomi... 

E Ozomi com suas armas, 
com suas fardas, com suas contas, 
com seus salários, suas famílias, 
com suas ordens, seus deveres, 
com continências, suas amantes, 
com seus pecados chegam no susto,
sem marcar a hora
da morte. 

Sempre cai mais dos Meninos, 
sempre cai mais dessa cor, 
sempre cai que nem biscoito,
se perdem um vem dezoito...

Depois da onda voltam pra casa, 
tanto Ozomi como os Meninos, 
comem seus pratos, suas mulheres, 
pedem a bença pros seus padrinhos, 
vão ao terreiro, vão à igreja, 
dormem cabreiros, na contenção
e quando acordam tomam seus postos,
com suas armas, suas rotinas 
e jamais marcam a hora
da morte.

CEP 20785-080



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Passei dos 16 aos 22
por alguns números
na rua Álvares de Azevedo, 
da fábrica Chinezinho, 
da casa de minha tia Jô 
e do meu amor morena, 
da travessia para a escola Rio de Janeiro 
para o postinho da Xuxa... 

Naquela época era impossível 
compreender minha própria lira. 

Na aula de literatura brasileira 
sobre o Mal do Século, 
no presídio-escola Delfim Moreira, 
percebi que eu era aquela rua
e decidi assim rotular meu verso 
por falta da concepção de estética, 
encantado com a tragédia do nome 
daquela rua, daquele poeta 
que eu queria ser, que já era, 
também eu tinha tanta tragédia... 

Naquela época só era possível
compreender minha própria ira. 

O jogo de futebol



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Tinha uns 8 anos. 
era o primeiro dia de escola,
ia sozinho, à beira do rio... 
Até hoje o cheiro de esgoto traz uma nostalgia...

Ia pelos cantos caçando grilos,
tinha muito mato por lá,
muito grilo grande, tinha esperança,
mas só morta, sabia bem 
a diferença da esperança e do grilo, 
a esperança é da noite, as antenas grandes, 
corpo de folha, um verde mais vivo, 
não era tão inocente a crer 
que encontraria esperança naquela manhã, 
mas questionava o porquê do nome:
"Esperança",
será que é porque é verde?
Qual a ligação? 
Não existe esperança azul ou vermelha, 
esperança transparente ou preta... 
E ficava divagando pela beira do rio. 
Até hoje verde é a cor que mais gosto.

Gostava de futebol.
Tinha o time da igreja. 
Claro que pararia para ver
se uns moleques estivessem jogando bola. 
Até hoje não curto futebol...

Primeiro dia de aula,
perto da escola, 
lá vinha pela beira do rio, 
caçando grilo e esperança, 
pensando no nome "esperança"
e em futebol, nas cores, no mato, 
um cheiro de esgoto curtido, 
uns meninos que jogavam futebol, 
parei para ver e foi isso... 

A bola era a cabeça de alguém 
e havia risos, 
cheiro de cigarro, esgoto
e risos. 

Se quer saber, 
passei a deixar em paz os grilos e esperanças. 

Duas tijucanas na lotérica do Matoso



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– Você não notou, Edir?
– Não notei Nilza, o que agora?
– Aquele ali, ali parado de frente pra cá.
– Você fala o da banca de jornal ou o que tá catando coisa?
– Edir, o que está parado de frente pra cá, esquece o outro catador.
– Nilza, aponta quem é!
– O da banca de jornal...
– Que que tem?
– Tão roubando aqui demais, ele não para de encarar. Eu disse à Valentina, minha neta, sabe aquela que chegou de Portugal? Disse que aqui não é de bom tom sair com telefone celular à mostra, ela não me ouve, faz aqueles tiques toques...
– Onde você quer chegar, Nilza Albuquerque de Soares?
– Não é óbvio, só pode ser aquele parado ali! Na certa está esperando vítimas como nós, fácil de roubar, pois vai se dar mal, Edir, deixei os anéis, relógio, celular, colar, tudo no apartamento, de mim não vai ter absolutamente nada...
– Que precavida... mas se ele se enfezar de você não ter nada, pode muito bem te dar um murro, te furar, sabe que eles andam com facas...
– Ai Nossa Senhora! Não pensei nisso.
– Sabe, Nilza, fica tranquila, olha lá ele sendo atravessado na faixa, é só um cego, tadinho.
– Mentira? E eu aqui toda me tremendo.
– Viu, sua palhaça?
– Vi, um preto tão bonitinho!

A patroa zona sul



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– O que você tem, menina? 
– Resfriado. O trem tava gelado o ar. 
– E tem ar no trem, é? 
– Tem simsenhora. 
– É bom que desinfeta, né?... mas tem que vir trabalhar. 
– Eu venho simsenhora. 
– Por isso o povo de lá continua lá. Dá uma febrinha já pega atestado, você não é assim não, é? 
– Eu nãosenhora! Eu vim, não vim? 
– Veio, você sabe que não te pago pra descansar em casa só por causa de uma febre de nada... com quem ficou a neném? 
– Com a vó... 
– Certo então, pode começar na cozinha. 
– Sim... 
– O quê? 
– Simsenhora simsenhora... 

Manual de cultivo



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Antes de tudo escolhi um método. 

Daquela mofada doutro dia, 
despelotando peguei a visão, 
contei umas quinze sementes, 
daí meti a bronca de plantar.

Fui vendo todo tipo de vídeo
de dica, de paranoia
e pensei comigo mesmo 
que o maconheiro
bem que podia gravar noutra hora, 
na que não tiver chapado.

Se liga.
Vai pegando as sementes
e escolhendo as sementes
apertando uma por uma, 
tem que estar firme cada uma, 
encha um copo de água 
e põe as sementes na água, 
dê um tempo de uns minutos 
e depois desses minutos 
vai notando se afundam, 
pegue aquelas que afundam
porque essas são as boas, 
as que boiam ocas não!

Num pote bem lavado
ponha uma folha de papel toalha,
as sementes boas no meio
e molhe um pouco, depois tampe,
ponha num lugar protegido e escuro 
e vai percebendo dia a dia
se brotam. 

Tu tem que dar teus pulos. 

Pesquise um bom substrato, 
pesquise um bom enraizador, 
pesquise um fertilizante 
que seja indicado para flor. 

pesquise a diferença dos sexos;
a planta fêmea e a planta macho, 
pesquise a rega, a questão do sol, 
eu acho que é isso, eu acho.

Apontamentos



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– Aonde é?
– Ali perto daquele moço de bigode.
– Onde mesmo?
– Então, quando você passar pela dona de coque.
– Sim, mas a referência?
– Olha, tá vendo aquele gordo fumante?
– Não, não tô vendo.
– Ao lado daquela puta de mini saia e salto alto.
— A loira?
– Não, essa acha que não está no local...
– A escura? 
– Não, essa está demais no local. 
– Então, seja mais específico.
– Beleza, tá vendo o lixeiro correndo, a caixa do mercado sonolenta, o vendedor de balas paladino, o motorista de ônibus hemofílico, o estudante bolsista, a manicure mãe de cinco, o garçom no primeiro dia de trabalho, tá vendo a velha manca, a coxa, a retinta, a viúva, o velho com a sacola de legumes, com o carteado, com o resultado do bicho, a moça toda de luto, a baiana da feira, o nordestino pedreiro, servente, marceneiro, ladrilheiro, porteiro, brasileiro, o favelado bruto, fetichezado, marginalizado, programado para se orgulhar da própria dor? 
Tá vendo o mendigo maluco, cheirando merda e desprezo, deitado bem no meio da calçada, tá vendo o caramelo lambendo a boca, tá vendo depois da esquina no ponto de ônibus outros perdidos como você?
– Não, não tô vendo não, diz onde fica por favor! 
– Olha, faz um esforço, você tem olhos, diabo!
– Repete que não pesquei... 
– Tá vendo o desnutrido esquálido, o viciado, a horda de crackudos na onda da fome, tá vendo o descaso transfigurado na carne, o Cristo sendo linchado, a zueira dos soldados de Roma, tá vendo o sangue escorrendo sem escândalo na mesma avenida por onde passa o desfile de Carnaval, você tá lendo mesmo esse poema estúpido?
– Olha, não tô vendo mesmo.
– Sabe, irmão, assim fica difícil...

A crise do prensado



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Pulei a estação de Costa Barros
pra dar o corre da semana,
peguei o trem sentido Central
e soltei no Jaca, tá ligado?... 

A feira tava malhada e cheia, 
cheiro de amônia, de mofo,
tava galhada, amarronzada, 
tava pelo dobro do que era,
comprei a de vinte, né, 
fiquei meio puto até, 
fazer o que, tá ligado? 

O gosto sujo de mijado, 
no interesse só da venda, 
sem cuidado, violenta 
de teto preto, de brisa ruim 
que não conhece outra opção. 
Daí botei pra ouvir Bezerra, botei mermo... 
Aquele do "É Esse aí que é o Homem" , 
fiz um balão e dei um dois. 
Deu um pigarro desgraçado, 
fazer o que, tá ligado?... 

Quanto é que custa?



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Quanto é que custa um carrinho de pipoca? 
Dez mil? Cinco mil? 
Você compra um carrinho de pipoca. 
Quanto é que custa o quilo da pipoca? 
Não da pipoca, mas do milho da pipoca. 
O quilo do milho tá quanto, cinco reais? 
Você compra o milho da pipoca. 
Onde que vende mais essa pipoca?
Você encontra onde vende mais pipoca. 
E você põe o seu carrinho de pipoca.
E ali você vai vendendo pipoca. 
Trelelê tralalá. 
Você tira o lucro e o capital da pipoca. 
Com o tempo certo você faz da pipoca
algo que seja mais do que pipoca, 
que seja a meta pipoca, a uber pipoca, 
a pipoca da pausa dramática,
a pipoca do conveniente, 
a pipoca militante, a pipoca anarquista, 
dê um sentido existencial para a pipoca, 
a complexa sofisticada pipoca, 
the best popcorn for all, 
a pipoca do milagre, do conchavo, 
a pipoca do jeitinho, do êxtase, do orgasmo, 
a pipoca da vanguarda do pipocanismo,
a pipoca eleita, fascista e democrática, 
a pipoca socialista, comunista, chovinista, 
a pipoca hipócrita... 
não a pipoca em si, aquela fora do poema, 
essa não vende, não produz ou acumula,
essa não interessa, 
você quer outra pipoca, 
aquela que está na nuvem, 
no subconsciente do impossível, 
a pipoca nirvana,
a única, lendária, épica, rara, 
a pipoca quântica
que é pipoca somente quando se abre a pipoqueira 
e quando se vê a pipoca, 
e não se sabe se é ou não é quando se não vê, 
faça parecer que essa pipoca é pipoca, 
minta até a realidade ceder! 
Então trelelê tralalá,
você terá o mérito da pipoca, 
será o patrão e o empregado da pipoca, 
dormirá e acordará pipoca, 
a pipoca indispensável, 
a pipoca que dentre as pipocas 
nunca será menos, nem o bastante, 
sempre será mais
e seja você também pipoca, 
aí tão somente compreenderá 
o segredo, o mistério, a verdade oculta
de quem levou a vida inteira 
para enriquecer de pipoca. 

Não há pobreza que dure
doze horas de trabalho por dia. 

O primo do profeta Gentileza



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O primo do profeta Gentileza 
é assembleiano; outra raça de profeta, 
gasta um troco com jet preto
e sai de madrugada pra pichar 
pelo Rio... 

O primo do profeta Gentileza 
escreveu no muro 
da SuperVia e do Metrô:
"Só Jesus expulsa o demônio das pessoas", 
no Méier e na Central também,
ele tem fé, 
é dízimista, 
foi batizado, 
todo domingo na reunião do jejum 
fala em línguas, gira no manto
caindo no poder quando passa o anjo... 

O primo do profeta Gentileza 
foi classificado pardo no certificado 
de reservista, 
foi confundido com outro pardo fugitivo 
na abordagem da polícia; o antigo baculejo, 
tomou porrada à beça, 
sujou a Bíblia e o paletó
quando rolou no barro
em frente ao restaurante popular
do centro de Belford Roxo, 
caiu com os olhos abertos, 
Deus o tenha e deve ter... 

O primo do Profeta gentileza 
encheu uns dois ônibus da Flores
e foi enterrado em Inhaúma
no dia de São Jorge. 
Não teve filhos. 

Fim de baile na Concórdia



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Passo rápido.
Acordei atrasado.
Três meninas varrem copos de plástico
no vômito róseo, 
os Meninos do Movimento
ensinam assim - elas brigaram, né? 
agora vão varrer o fim do baile,
putas da vida, ainda na onda... 

Elas carecas,
sem melissas, mas de francesinha,
cobertas de tatuagem e hematomas,
de choro e sangria, 
putas da vida, será que são mães? 
será que já amaram ou será...

Viro a esquina e perco 
o meia-vinte-quatro de 6:30, 
é o que dá pensar o mundo em versinhos...

Soneto



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Se você nunca voltou pra casa
fedendo,
se você não sabe o que é
um trilho de trem enterrado
na rua principal,
se você escreve certinho
e leu alguma bicha empolada
e gringa de nome difícil 
e nunca deu de cara com presunto, 
nem fugiu de blitz,
nem teve a porra de um fuzil no nariz
como despertador,
nem entende do cheiro da pólvora
no sangue, 
nem deu o do cafezinho 
no Detran, 
nem pegou fila em órgão público 
para ter direito de existir, 
nem ficou de xereca
com o resultado da chuva,
se você nunca engoliu a contragosto
a cerveja quente, a segunda-feira,
o seco de ir em pé 
de um terminal a outro, 
se não sabe interpretar 
o tampo de um caixão fechado, 
se nunca ficou de joelhos 
para limpar embaixo dos móveis
que não são seus, 
se a Santa Operação
não tocou tua mãe na escada,
não explodiu na padaria,
no sacolão, na calçada, 
se aí você não se jogou no chão... 
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