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Trêmulo passarinho,
quem teu cantar minguou
e derrubou seu ninho?

Foi a chuva que magoou
tua asa estranha e torta
impossível de alçar voo?

Pia teu canto, que importa
as queixas da tempestade,
o vento cruel que te corta?...

Pia, que da mocidade
nada mais fica que a mancha,
um borrão na eternidade
que tão fácil se desmancha...

Emily Dickinson



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Ao vê-la eu diria certamente:
como esta mulher está doente!
Assim nadando raso, convicto 
me tornaria mais um pobre adicto.

Ela está longe, intocável - aceito
que para a morte ter o seu efeito
seja comum à versatilidade 
em nos tirar a força e a vontade...

Branca e reclusa, atenta a seu catálogo,
transcreve a flora do seu amor análogo 
à noite turva que liberta a melodia 
da solidão que lhe impõe melancolia...

Ao vê-la de mudez ser encrustada
eu lhe diria: Emy, é uma nova estada 
entre outros dias mais, consecutivos,
é uma pena que ainda estamos vivos.

Bloco de notas



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Prático.
Salvo em nuvem,
uma senha, login, corretor ortográfico.
Abro uma aba de inveja 
outra de receita low carb,
abro uma aba e te vejo
para esmurrar a distância.

Vou catando signos nesta reciclagem 
e os organizo em cores.
Ah, que vaidade,
quando encontrarem 
tanto desvalor descrito,
tudo arrumado assim
com a pretensa intenção 
de um romantismo póstumo...

Quem ainda escreve verso, meus deus?!
Faço isso, talvez,
para ter uma prova cabal 
de que ainda não sou um robô...
Numa aba a Segunda Guerra,
noutra The Animated Series,
numa aba a teu novo colorir,
noutra a música que eu ainda não aprendi.

Quadros



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1

Chega o trem. Não há lugar.
Uma após outra as estações...
Cotidiano. Objetivo. 
De quando em quando 
um peixe entre as redes sociais -
Sobre esses palcos nós somos 
as vítimas das comparações.
Que pena. Não há lugar.

Chega ao trabalho. Bate o ponto.
Tudo é normal, tudo. Tudo é tão barulhento.
Tudo é tão mudo. 
Não há lugar.
Está sorrindo, comendo, fodendo...
Está dançando e cantando, lendo, estudando...
Está mamando um estranho miserável,
está bebendo todas e como antes
chega o fim de semana. Bate o ponto.

Não há lugar? 
Em casa dorme e sonha,
acorda e banho, café e sai.
E chega o dia do salto e quem diria;
não era ela "a feliz"?

2

Então é a fama isso. O sucesso aquilo.
Todas as drogas, todos os vícios.
Novos paraísos efêmeros, alegorias
aos seus pés de barro...
O vazio - o deus cansado, irmão 
do tédio, da doença e do fim.
E a solidão traz a bandeja dos fracassos
para servir a sua alteza inútil.
E de repente, sem mais...
Logo ele que tinha tudo. Todas as drogas.
Todos os vícios...

3

Foi previsível. Depois da traição,
da vergonha, do medo.
Depois de ser enxotado - um cachorro 
sem previsão de nada. Depois
de todo aquele drama infinito e cômico.
Toda a família esperava.
Seria o quê? 
Um tiro? Overdose? Veneno? 
A corda e um nó?

Não teve graça. Só isso.
Nunca tem.

4

Sempre uma foto. Uma frase. 
Ela desafia o limite do positivismo. 
Que ingênua! Eles julgam.
A herdeira das máscaras carnívoras
que mastigam suas faces decadentes.

Sempre um bem adquirido, valores
da família de bens. Outro álbum 
impoluto e branco sobre a mesa,
outra carreira de pó adquirida
e o coração sedento 
por desejo mais humilde
cede ao fim.


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Olho-te, lentamente, 
Em teu rosto o longe branco 
Cetim, em teu rosto o mármore 
Da arte romana e trágica...
Nada mais que solidão.
Sozinha assim, com suas fotos,
A tua intenção é tão pura,
Translúcida...
Te falta confiança? 
A tua imagem é o que se produz
Do seu intelecto, 
Mas distante... 
Não me leve a mal, 
Estou a par que todo humano caga, 
E tem seus medos, obsessões...
Olho-te, atentamente, meu eu comum 
Ensaia o momento e o romance.
Sorrio...
Não sei quem você é, meu bem: 
Ave de rapina. Teu pio - mal agouro
Ecoa noite adentro e morre. 
E me mata...
Te falta mais idade?
Eu arranquei as tuas folhas
Naquele sonho tardio, muito embora
Estivesse nua com toda essa palidez,
Eu só te via o cérebro...
Olho-te há tempos, não sei o que vejo
Além do teu espelho e penso:
A quem ela quer convencer?
Talvez conhecesse a mesma dor
De não poder repartir comigo 
Esse presente, esse instante... 

Caderno



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Quando acendo o meu cigarro,
enquanto espero na estação 
o semi expresso atrasado
e fico olhando para o chão,
sempre chega um aluado
e me estende a sua mão,
às vezes pede o meu cigarro
e às vezes pede uma canção.
Então eu abro meu caderno 
e faço alguma anotação
com uma cara de coitado
que não apreende a dizer não!
Ela estudou gastronomia,
mas trabalhando de atendente,
tem que ajudar sua família
e seu irmão que é delinquente,
sai todo dia à mesma hora,
tem uma folga por semana
e quase sempre ela demora
pra levantar da sua cama...
Então eu abro meu caderno
e faço outra anotação,
não sei porque, mas levo a sério
o prêmio de participação!
Ele já leu filosofia,
não acredita na TV,
faz tudo certo todo dia
e às vezes tenta se entreter. 
Já aprendeu que ter razão 
não é o mesmo que ser burro,
escolhe sempre o mesmo vagão 
o mesmo banco e o mesmo empurro...
Então eu faço a mesma coisa,
você já sabe o que que é,
pois todo mundo tem um vício:
um cigarrinho com café...


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Era tempo de festa. Todos estavam envolvidos nos preparos. Os que cuidavam das comidas esplendiam risos, trocavam piadas repetidas. A música alta no aparelho de som. Era engraçado quando toda família se reunia. Duas primas arrumavam a mesa com flores...
Eu estava na praia com ela. O mar encapelado rugia e chacoalhava sua juba de espuma perolada...

Era madrugada quando cheguei em casa, a festa já tinha acontecido, tudo estava calmo e sonolento. Um pote de comida na geladeira com meu nome escrito nele. Ouvi passos, corri para ver... (neste ponto houve um bloqueio mental, não sei dizer o que vi na escada.)

Agora eu estava no banheiro, mais certo seria dizer: estávamos no banheiro. Eu me observava no banho, mas já não era eu, não era... minhas verdadeiras mãos tentavam escapar daquela prisão de vidro, o que eu realmente era estava preso dentro do espelho. Aquele outro agora se secava com a minha toalha, vestia minha roupa e se dirigia ao meu quarto, onde certamente o meu grande amor dormia! No entanto, meus esforços não foram em vão. Quebrei a prisão de espelho e me reuni com meu corpo, o que desencadeou um estranho fenômeno onde os móveis, os livros, as roupas, chinelos, tudo parecia flutuar e rodopiar numa dança macabra, as luzes chispavam relâmpagos que escreviam palavras incompreensíveis na parede e no piso...


Vírus



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Eu sou o toque que transmite o vírus,
teu corpo todo quero possuir,
pois é assim que eu sobrevivo,
eu só preciso me difundir, 
no teu cabelo preto de nanquim
vou expandir o mapa do meu jogo,
quem sabe um dia chegarei ao fim?
quem sabe eu tenha que tentar de novo?

O meu discurso é persuasivo,
quem me despreza vai me conhecer
e cedo ou tarde será consumido
e de repente desaparecer...
Quem acredita ser superior
talvez não saiba o que é ser forte...
quem sabe eu tenha que usar a dor?
quem sabe eu tenha que causar a morte?

Se fatalmente eu te encontrar,
seja no ônibus ou no metrô,
basta um beijo pra te infectar
com o que penso ser o meu amor!
Porque a vida é mesmo assim - cruel.
E todo mundo finge que não sabe!
Porque ninguém quer mais olhar pro céu
pra descobrir o que é eternidade?...

E você pode me chamar de vírus,
a ignorância será  meu prazer
quando teu corpo se tornar cativo
e quando a febre te fizer sofrer,
uma lembrança do seu grande amor
talvez te cure, talvez te conforte.
Quem sabe eu tenha que usar a dor,
Quem sabe eu tenha que causar a morte?

Quem sabe eu tenha que usar a dor,
Quem sabe eu tenha que causar a morte?