Carta II



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Não me vês. Como podes? Qual o sentido de mentir quando a obviedade dos fatos é tão sólida e fria? Ah, quanto mistério faz ninho nessa árvore hirsuta da consciência humana! Veja os ovinhos!
Não me vês contorcer os neurônios em busca do silêncio palpável, de alívio torrente, de alguma voz sincera que não me diga a verdade! Desprezado o signo da minha alma, reclamo o que nunca foi promessa tua, elaboro alusões pretensas, mulambos sinestésicos, tardios, cheios de estéticas rotas, reduzidos ao bocejo do tempo, da grandeza que vence, que abate, que pilha. Admito, vou morrer! 
Outrora a juventude resplendia dulçor e novidade quente, instigante. Ah, a incoerência que se mantinha firme nos cadernos velhos, debatidos, desortográficos, pueris, que descobriste infindos, vivificados. Será que não sei que sou invisível? 
Nunca me viste. O que pensavas emoldurar na tua visão ideal? Algum nativo, idílico e selvagem, cantando palavras de ordem e coragem, olhos em chamas, músculos vibrantes rítmicos, gargantas aos berros nas fileiras da ânsia primeva do combate?!
Não me lês. É fato, mas não desanimes. Nem me julgues ingênuo a ponto de te crer desperta enquanto amputo em fixa desobediência essas e outras orações.
Antes divago. Quem sabe só tu me conheces e ainda mais do que almejo me conhecer. Como dói não ser o sol, a viração, o olho do coelho ou o arzinho cálido do solfejo que te perfuma de nardo e gás carbônico. 

Minha caríssima Madalena, saudades. 

XII



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Serás, talvez, bem mais do que presumes, 
garoto só, Nobre Anto - bronze a pele 
que arriscas, pobre e rude em teus queixumes 
cheios de deboche. Como me repele

aquilo que não tens entre teus lumes, 
que fere a si porque assim se compele 
daqueles quase todos dos cardumes, 
que te destacam lindo, mas imbele... 

Ai, não me chore, que hoje a regra basta, 
que não darei meu peito de bandeja,
pegada por tua birra, charme ou mimo, 

cansei de te dar mole e me contrasta 
o verso que te imponho, que te beija 
na minha própria falta de um estimo! 

Duas tijucanas na lotérica do Matoso



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– Você não notou, Edir?
– Não notei Nilza, o que agora?
– Aquele ali, ali parado de frente pra cá.
– Você fala o da banca de jornal ou o que tá catando coisa?
– Edir, o que está parado de frente pra cá, esquece o outro catador.
– Nilza, aponta quem é!
– O da banca de jornal...
– Que que tem?
– Tão roubando aqui demais, ele não para de encarar. Eu disse à Valentina, minha neta, sabe aquela que chegou de Portugal? Disse que aqui não é de bom tom sair com telefone celular à mostra, ela não me ouve, faz aqueles tiques toques...
– Onde você quer chegar, Nilza Albuquerque de Soares?
– Não é óbvio, só pode ser aquele parado ali! Na certa está esperando vítimas como nós, fácil de roubar, pois vai se dar mal, Edir, deixei os anéis, relógio, celular, colar, tudo no apartamento, de mim não vai ter absolutamente nada...
– Que precavida... mas se ele se enfezar de você não ter nada, pode muito bem te dar um murro, te furar, sabe que eles andam com facas...
– Ai Nossa Senhora! Não pensei nisso.
– Sabe, Nilza, fica tranquila, olha lá ele sendo atravessado na faixa, é só um cego, tadinho.
– Mentira? E eu aqui toda me tremendo.
– Viu, sua palhaça?
– Vi, um preto tão bonitinho!

Carta I



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Antes da palavra não dita, escrita tantas vezes com motivos de carinho. Antes da lembrança predileta, do presente desejado por mérito mais que justo, antes do perfume único exilado nos confins dos teus cabelos limpos. 
Antes do nascer do dia; da força de vontade que impulsiona os corpos cansados; braços insistentes no embalo do corpo quando o futuro é natimorto.
Antes de chegar a tarde, a conversa sadia sobre aquele livro do século passado, o cigarro aceso no cinzeiro, o copo morno, os olhares que se entrecruzam simulando lábios, a mesa com talheres simples e pratos vazios... 
Antes de vingar o fruto da conquista doce no fim de um caminho amargo, humano. Antes de despertar o esplendor do senso empírico. 
Porque não é a melodia nem o silêncio duro, nem as mágoas que se solidificam ídolos, nem cicatrizes que se debatem janelas de inverno, vendavais, propósitos...
Porque não é a falta de certeza que provém de tudo. 

Porque antes de ti, meu amor, eu não era. 

A patroa zona sul



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– O que você tem, menina? 
– Resfriado. O trem tava gelado o ar. 
– E tem ar no trem, é? 
– Tem simsenhora. 
– É bom que desinfeta, né?... mas tem que vir trabalhar. 
– Eu venho simsenhora. 
– Por isso o povo de lá continua lá. Dá uma febrinha já pega atestado, você não é assim não, é? 
– Eu nãosenhora! Eu vim, não vim? 
– Veio, você sabe que não te pago pra descansar em casa só por causa de uma febre de nada... com quem ficou a neném? 
– Com a vó... 
– Certo então, pode começar na cozinha. 
– Sim... 
– O quê? 
– Simsenhora simsenhora... 

VI O Poeta



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Amálgama lisérgico da realidade,
propenso à adicção rotunda dos lampejos, 
que vai negando ir, que subtrai das furnas
sinapses de carne dionísica adentro. 
 
Seguindo a velha escola do amputacionismo, 
malhado como Judas que nunca viu a prata;
vagabo dos vagabos, vestes de barril, 
correndo todo bairro em busca de um perverso... 

Discípulo aberrante que prega o suicídio, 
suspenso tal Jesus, amadeirado e nu, 
tingido de sentir insignificâncias, 

defende eternizar a pretensão risível 
da natureza morta - crivo supressivo 
que tenta refutar entranhas e universos.

Carta XV



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Aqui pretendo esmiuçar, sem perder a pose teatral, essas cartas para ti. Adianto que acendi um incenso de café, seria mais lógico passar um café, porém tenho tido ataques de gastrite; certamente devido à ação dos confetes que equilibram meu sistema nervoso central junto com o café - tive de me abster... ou tive de abster? Frequentemente tem me acometido as dúvidas verbais, inoculado de um processamento lento, paro e foco no horizonte em busca de uma palavra e acabo rolando os cumes das nuvens ou achando ritmo no baile das árvores do vale neblinoso...
Aqui já me perdi, vê? Voltemos ao cerne dessas cartas. Cartas, por definição, devem comunicar algo a alguém e este alguém, por meio da carta, ter ciência do algo que lhe foi conferido, daí responde ou não com seu algo preferido e assim, os dois perseguidores de algo, vão por algum motivo estabelecendo esse escambo persecutório... 
Mas, aqui refiro-me ao leitor(a) deste desumilde contexto: os novos anos 20. A ideia inicial era apenas escrever uma correspondência para seus olhos, insinuando imagens que te provocassem essa coisa de arte que transforma e peretetê pão duro, mas por vezes fui traído pelas musas ou cá entre nós, viajei no purê. Sempre preferi purê à maionese, pois no "Catálogo de  Alimentos, Texturas e Sinestesias" os dois pertencem à mesma classe sensorial, por isso podem ser comparados, sabes que jamais cometeria essa gafe de comparar objetos subjetivos que se significam, essencialmente, nos padrões preestabelecidos, em grupos lógicos diferentes. 
Taí?... Penso que escrever qualquer coisa hoje em dia é um ato subversivo, ainda mais sob a marquise de uma pretensão artística, essa qualquer coisa escrita vira um dado precificado e rapidamente me pego tentando organizar o caos da pós-modernidade... 
Onde chegamos – ler poesia é ser subversivo? Talvez em 1968 nos tempos do baculejo.
Então, me conta, como vai você? Tem lido o quê? Tem lido? Tem ouvido discos novos? Tem escrito suas coisas? Tem se importado com estética, com ética? 
Ouvi dizer que o universo como conhecemos colapsará antes do combinado, é foda. São os tempos líquidos, Bauman isso, Baudrillard aquilo... Chato demais! 

Manual de cultivo



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Antes de tudo escolhi um método. 

Daquela mofada doutro dia, 
despelotando peguei a visão, 
contei umas quinze sementes, 
daí meti a bronca de plantar.

Fui vendo todo tipo de vídeo
de dica, de paranoia
e pensei comigo mesmo 
que o maconheiro
bem que podia gravar noutra hora, 
na que não tiver chapado.

Se liga.
Vai pegando as sementes
e escolhendo as sementes
apertando uma por uma, 
tem que estar firme cada uma, 
encha um copo de água 
e põe as sementes na água, 
dê um tempo de uns minutos 
e depois desses minutos 
vai notando se afundam, 
pegue aquelas que afundam
porque essas são as boas, 
as que boiam ocas não!

Num pote bem lavado
ponha uma folha de papel toalha,
as sementes boas no meio
e molhe um pouco, depois tampe,
ponha num lugar protegido e escuro 
e vai percebendo dia a dia
se brotam. 

Tu tem que dar teus pulos. 

Pesquise um bom substrato, 
pesquise um bom enraizador, 
pesquise um fertilizante 
que seja indicado para flor. 

pesquise a diferença dos sexos;
a planta fêmea e a planta macho, 
pesquise a rega, a questão do sol, 
eu acho que é isso, eu acho.