Carta I



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Antes da palavra não dita, escrita tantas vezes com motivos de carinho. Antes da lembrança predileta, do presente desejado por mérito mais que justo, antes do perfume único exilado nos confins dos teus cabelos limpos. 
Antes do nascer do dia; da força de vontade que impulsiona os corpos cansados; braços insistentes no embalo do corpo quando o futuro é natimorto.
Antes de chegar a tarde, a conversa sadia sobre aquele livro do século passado, o cigarro aceso no cinzeiro, o copo morno, os olhares que se entrecruzam simulando lábios, a mesa com talheres simples e pratos vazios... 
Antes de vingar o fruto da conquista doce no fim de um caminho amargo, humano. Antes de despertar o esplendor do senso empírico. 
Porque não é a melodia nem o silêncio duro, nem as mágoas que se solidificam ídolos, nem cicatrizes que se debatem janelas de inverno, vendavais, propósitos...
Porque não é a falta de certeza que provém de tudo. 

Porque antes de ti, meu amor, eu não era. 

A patroa zona sul



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– O que você tem, menina? 
– Resfriado. O trem tava gelado o ar. 
– E tem ar no trem, é? 
– Tem simsenhora. 
– É bom que desinfeta, né?... mas tem que vir trabalhar. 
– Eu venho simsenhora. 
– Por isso o povo de lá continua lá. Dá uma febrinha já pega atestado, você não é assim não, é? 
– Eu nãosenhora! Eu vim, não vim? 
– Veio, você sabe que não te pago pra descansar em casa só por causa de uma febre de nada... com quem ficou a neném? 
– Com a vó... 
– Certo então, pode começar na cozinha. 
– Sim... 
– O quê? 
– Simsenhora simsenhora... 

VI O Poeta



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Amálgama lisérgico da realidade,
propenso à adicção rotunda dos lampejos, 
que vai negando ir, que subtrai das furnas
sinapses de carne dionísica adentro. 
 
Seguindo a velha escola do amputacionismo, 
malhado como Judas que nunca viu a prata;
vagabo dos vagabos, vestes de barril, 
correndo todo bairro em busca de um perverso... 

Discípulo aberrante que prega o suicídio, 
suspenso tal Jesus, amadeirado e nu, 
tingido de sentir insignificâncias, 

defende eternizar a pretensão risível 
da natureza morta - crivo supressivo 
que tenta refutar entranhas e universos.

Carta XV



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Aqui pretendo esmiuçar, sem perder a pose teatral, essas cartas para ti. Adianto que acendi um incenso de café, seria mais lógico passar um café, porém tenho tido ataques de gastrite; certamente devido à ação dos confetes que equilibram meu sistema nervoso central junto com o café - tive de me abster... ou tive de abster? Frequentemente tem me acometido as dúvidas verbais, inoculado de um processamento lento, paro e foco no horizonte em busca de uma palavra e acabo rolando os cumes das nuvens ou achando ritmo no baile das árvores do vale neblinoso...
Aqui já me perdi, vê? Voltemos ao cerne dessas cartas. Cartas, por definição, devem comunicar algo a alguém e este alguém, por meio da carta, ter ciência do algo que lhe foi conferido, daí responde ou não com seu algo preferido e assim, os dois perseguidores de algo, vão por algum motivo estabelecendo esse escambo persecutório... 
Mas, aqui refiro-me ao leitor(a) deste desumilde contexto: os novos anos 20. A ideia inicial era apenas escrever uma correspondência para seus olhos, insinuando imagens que te provocassem essa coisa de arte que transforma e peretetê pão duro, mas por vezes fui traído pelas musas ou cá entre nós, viajei no purê. Sempre preferi purê à maionese, pois no "Catálogo de  Alimentos, Texturas e Sinestesias" os dois pertencem à mesma classe sensorial, por isso podem ser comparados, sabes que jamais cometeria essa gafe de comparar objetos subjetivos que se significam, essencialmente, nos padrões preestabelecidos, em grupos lógicos diferentes. 
Taí?... Penso que escrever qualquer coisa hoje em dia é um ato subversivo, ainda mais sob a marquise de uma pretensão artística, essa qualquer coisa escrita vira um dado precificado e rapidamente me pego tentando organizar o caos da pós-modernidade... 
Onde chegamos – ler poesia é ser subversivo? Talvez em 1968 nos tempos do baculejo.
Então, me conta, como vai você? Tem lido o quê? Tem lido? Tem ouvido discos novos? Tem escrito suas coisas? Tem se importado com estética, com ética? 
Ouvi dizer que o universo como conhecemos colapsará antes do combinado, é foda. São os tempos líquidos, Bauman isso, Baudrillard aquilo... Chato demais! 

Manual de cultivo



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Antes de tudo escolhi um método. 

Daquela mofada doutro dia, 
despelotando peguei a visão, 
contei umas quinze sementes, 
daí meti a bronca de plantar.

Fui vendo todo tipo de vídeo
de dica, de paranoia
e pensei comigo mesmo 
que o maconheiro
bem que podia gravar noutra hora, 
na que não tiver chapado.

Se liga.
Vai pegando as sementes
e escolhendo as sementes
apertando uma por uma, 
tem que estar firme cada uma, 
encha um copo de água 
e põe as sementes na água, 
dê um tempo de uns minutos 
e depois desses minutos 
vai notando se afundam, 
pegue aquelas que afundam
porque essas são as boas, 
as que boiam ocas não!

Num pote bem lavado
ponha uma folha de papel toalha,
as sementes boas no meio
e molhe um pouco, depois tampe,
ponha num lugar protegido e escuro 
e vai percebendo dia a dia
se brotam. 

Tu tem que dar teus pulos. 

Pesquise um bom substrato, 
pesquise um bom enraizador, 
pesquise um fertilizante 
que seja indicado para flor. 

pesquise a diferença dos sexos;
a planta fêmea e a planta macho, 
pesquise a rega, a questão do sol, 
eu acho que é isso, eu acho.

No quarto à meia noite



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Diz ao Vento: – Carrega-me ao horizonte!
Mas responde: – Quem dera, folha morta...
Diz ao Sonho: – Vem, toca minha fronte!
Que se enerva: – Por quê? Não me comporta... 

Pede à Luz: – Desenluta-me, Caronte!
Ela fala: – Só o dracma me importa...
E suplica: – Cai sobre mim, oh, Monte!
O qual soa: – Teu silêncio me conforta.

Será assim? – Concretizo que obedeça.
Que pretende? – Pilhar outra cabeça.
Que medita? – Na dúvida que enflora...

Será o Amor? – Nunca vi, nem tenho visto. 
Por que mentes? – Talvez porque desisto...
O que é a vida? – Um deus que se devora! 

O Destino



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"Ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver, dedico como saudosa lembrança estas memórias póstumas.”

Machado de Assis

Eu tenho um Verme como amigo, 
que sempre ampara meu suplício
quando se chega, meretrício, 
a se enredar no que te digo... 

Verme Destino, não o predigo, 
se bem conheço do teu ofício, 
se vens render da rima o vício
ou vais compor um novo antigo... 

Vejo-o dançar sobre esse lodo, 
a desprezar o Mundo e o Todo, 
moldando Golens para amar-te. 

Teu mal prazer mais nos instiga, 
e nos impõem, logo castiga, 
assim na morte como na arte. 

Apontamentos



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– Aonde é?
– Ali perto daquele moço de bigode.
– Onde mesmo?
– Então, quando você passar pela dona de coque.
– Sim, mas a referência?
– Olha, tá vendo aquele gordo fumante?
– Não, não tô vendo.
– Ao lado daquela puta de mini saia e salto alto.
— A loira?
– Não, essa acha que não está no local...
– A escura? 
– Não, essa está demais no local. 
– Então, seja mais específico.
– Beleza, tá vendo o lixeiro correndo, a caixa do mercado sonolenta, o vendedor de balas paladino, o motorista de ônibus hemofílico, o estudante bolsista, a manicure mãe de cinco, o garçom no primeiro dia de trabalho, tá vendo a velha manca, a coxa, a retinta, a viúva, o velho com a sacola de legumes, com o carteado, com o resultado do bicho, a moça toda de luto, a baiana da feira, o nordestino pedreiro, servente, marceneiro, ladrilheiro, porteiro, brasileiro, o favelado bruto, fetichezado, marginalizado, programado para se orgulhar da própria dor? 
Tá vendo o mendigo maluco, cheirando merda e desprezo, deitado bem no meio da calçada, tá vendo o caramelo lambendo a boca, tá vendo depois da esquina no ponto de ônibus outros perdidos como você?
– Não, não tô vendo não, diz onde fica por favor! 
– Olha, faz um esforço, você tem olhos, diabo!
– Repete que não pesquei... 
– Tá vendo o desnutrido esquálido, o viciado, a horda de crackudos na onda da fome, tá vendo o descaso transfigurado na carne, o Cristo sendo linchado, a zueira dos soldados de Roma, tá vendo o sangue escorrendo sem escândalo na mesma avenida por onde passa o desfile de Carnaval, você tá lendo mesmo esse poema estúpido?
– Olha, não tô vendo mesmo.
– Sabe, irmão, assim fica difícil...