22 maio 2025

Duas tijucanas na lotérica do Matoso

– Você não notou, Edir?
– Não notei Nilza, o que agora?
– Aquele ali, ali parado de frente pra cá.
– Você fala o da banca de jornal ou o que tá catando coisa?
– Edir, o que está parado de frente pra cá, esquece o outro catador.
– Nilza, aponta quem é!
– O da banca de jornal...
– Que que tem?
– Tão roubando aqui demais, ele não para de encarar. Eu disse à Valentina, minha neta, sabe aquela que chegou de Portugal? Disse que aqui não é de bom tom sair com telefone celular à mostra, ela não me ouve, faz aqueles tiques toques...
– Onde você quer chegar, Nilza Albuquerque de Soares?
– Não é óbvio, só pode ser aquele parado ali! Na certa está esperando vítimas como nós, fácil de roubar, pois vai se dar mal, Edir, deixei os anéis, relógio, celular, colar, tudo no apartamento, de mim não vai ter absolutamente nada...
– Que precavida... mas se ele se enfezar de você não ter nada, pode muito bem te dar um murro, te furar, sabe que eles andam com facas...
– Ai Nossa Senhora! Não pensei nisso.
– Sabe, Nilza, fica tranquila, olha lá ele sendo atravessado na faixa, é só um cego, tadinho.
– Mentira? E eu aqui toda me tremendo.
– Viu, sua palhaça?
– Vi, um preto tão bonitinho!

21 maio 2025

Carta I

Antes da palavra não dita, escrita tantas vezes com motivos de carinho. Antes da lembrança predileta, do presente desejado por mérito mais que justo, antes do perfume único exilado nos confins dos teus cabelos limpos. 
Antes do nascer do dia; da força de vontade que impulsiona os corpos cansados; braços insistentes no embalo do corpo quando o futuro é natimorto.
Antes de chegar a tarde, a conversa sadia sobre aquele livro do século passado, o cigarro aceso no cinzeiro, o copo morno, os olhares que se entrecruzam simulando lábios, a mesa com talheres simples e pratos vazios... 
Antes de vingar o fruto da conquista doce no fim de um caminho amargo, humano. Antes de despertar o esplendor do senso empírico. 
Porque não é a melodia nem o silêncio duro, nem as mágoas que se solidificam ídolos, nem cicatrizes que se debatem janelas de inverno, vendavais, propósitos...
Porque não é a falta de certeza que provém de tudo. 

Porque antes de ti, meu amor, eu não era. 

20 maio 2025

A patroa zona sul

– O que você tem, menina? 
– Resfriado. O trem tava gelado o ar. 
– E tem ar no trem, é? 
– Tem simsenhora. 
– É bom que desinfeta, né?... mas tem que vir trabalhar. 
– Eu venho simsenhora. 
– Por isso o povo de lá continua lá. Dá uma febrinha já pega atestado, você não é assim não, é? 
– Eu nãosenhora! Eu vim, não vim? 
– Veio, você sabe que não te pago pra descansar em casa só por causa de uma febre de nada... com quem ficou a neném? 
– Com a vó... 
– Certo então, pode começar na cozinha. 
– Sim... 
– O quê? 
– Simsenhora simsenhora... 

19 maio 2025

VI O Poeta

Amálgama lisérgico da realidade,
propenso à adicção rotunda dos lampejos, 
que vai negando ir, que subtrai das furnas
sinapses de carne dionísica adentro. 
 
Seguindo a velha escola do amputacionismo, 
malhado como Judas que nunca viu a prata;
vagabo dos vagabos, vestes de barril, 
correndo todo bairro em busca de um perverso... 

Discípulo aberrante que prega o suicídio, 
suspenso tal Jesus, amadeirado e nu, 
tingido de sentir insignificâncias, 

defende eternizar a pretensão risível 
da natureza morta - crivo supressivo 
que tenta refutar entranhas e universos.

17 maio 2025

Manual de cultivo

Antes de tudo escolhi um método. 

Daquela mofada doutro dia, 
despelotando peguei a visão, 
contei umas quinze sementes, 
daí meti a bronca de plantar.

Fui vendo todo tipo de vídeo
de dica, de paranoia
e pensei comigo mesmo 
que o maconheiro
bem que podia gravar noutra hora, 
na que não tiver chapado.

Se liga.
Vai pegando as sementes
e escolhendo as sementes
apertando uma por uma, 
tem que estar firme cada uma, 
encha um copo de água 
e põe as sementes na água, 
dê um tempo de uns minutos 
e depois desses minutos 
vai notando se afundam, 
pegue aquelas que afundam
porque essas são as boas, 
as que boiam ocas não!

Num pote bem lavado
ponha uma folha de papel toalha,
as sementes boas no meio
e molhe um pouco, depois tampe,
ponha num lugar protegido e escuro 
e vai percebendo dia a dia
se brotam. 

Tu tem que dar teus pulos. 

Pesquise um bom substrato, 
pesquise um bom enraizador, 
pesquise um fertilizante 
que seja indicado para flor. 

pesquise a diferença dos sexos;
a planta fêmea e a planta macho, 
pesquise a rega, a questão do sol, 
eu acho que é isso, eu acho.

16 maio 2025

No quarto à meia noite

Diz ao Vento: – Carrega-me ao horizonte!
Mas responde: – Quem dera, folha morta...
Diz ao Sonho: – Vem, toca minha fronte!
Que se enerva: – Por quê? Não me comporta... 

Pede à Luz: – Desenluta-me, Caronte!
Ela fala: – Só o dracma me importa...
E suplica: – Cai sobre mim, oh, Monte!
O qual soa: – Teu silêncio me conforta.

Será assim? – Concretizo que obedeça.
Que pretende? – Pilhar outra cabeça.
Que medita? – Na dúvida que enflora...

Será o Amor? – Nunca vi, nem tenho visto. 
Por que mentes? – Talvez porque desisto...
O que é a vida? – Um deus que se devora! 

15 maio 2025

O Destino

"Ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver, dedico como saudosa lembrança estas memórias póstumas.”

Machado de Assis

Eu tenho um Verme como amigo, 
que sempre ampara meu suplício
quando se chega, meretrício, 
a se enredar no que te digo... 

Verme Destino, não o predigo, 
se bem conheço do teu ofício, 
se vens render da rima o vício
ou vais compor um novo antigo... 

Vejo-o dançar sobre esse lodo, 
a desprezar o Mundo e o Todo, 
moldando Golens para amar-te. 

Teu mal prazer mais nos instiga, 
e nos impõem, logo castiga, 
assim na morte como na arte. 

14 maio 2025

Apontamentos

– Aonde é?
– Ali perto daquele moço de bigode.
– Onde mesmo?
– Então, quando você passar pela dona de coque.
– Sim, mas a referência?
– Olha, tá vendo aquele gordo fumante?
– Não, não tô vendo.
– Ao lado daquela puta de mini saia e salto alto.
— A loira?
– Não, essa acha que não está no local...
– A escura? 
– Não, essa está demais no local. 
– Então, seja mais específico.
– Beleza, tá vendo o lixeiro correndo, a caixa do mercado sonolenta, o vendedor de balas paladino, o motorista de ônibus hemofílico, o estudante bolsista, a manicure mãe de cinco, o garçom no primeiro dia de trabalho, tá vendo a velha manca, a coxa, a retinta, a viúva, o velho com a sacola de legumes, com o carteado, com o resultado do bicho, a moça toda de luto, a baiana da feira, o nordestino pedreiro, servente, marceneiro, ladrilheiro, porteiro, brasileiro, o favelado bruto, fetichezado, marginalizado, programado para se orgulhar da própria dor? 
Tá vendo o mendigo maluco, cheirando merda e desprezo, deitado bem no meio da calçada, tá vendo o caramelo lambendo a boca, tá vendo depois da esquina no ponto de ônibus outros perdidos como você?
– Não, não tô vendo não, diz onde fica por favor! 
– Olha, faz um esforço, você tem olhos, diabo!
– Repete que não pesquei... 
– Tá vendo o desnutrido esquálido, o viciado, a horda de crackudos na onda da fome, tá vendo o descaso transfigurado na carne, o Cristo sendo linchado, a zueira dos soldados de Roma, tá vendo o sangue escorrendo sem escândalo na mesma avenida por onde passa o desfile de Carnaval, você tá lendo mesmo esse poema estúpido?
– Olha, não tô vendo mesmo.
– Sabe, irmão, assim fica difícil...