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Era tempo de festa. Todos estavam envolvidos nos preparos. Os que cuidavam das comidas esplendiam risos, trocavam piadas repetidas. A música alta no aparelho de som. Era engraçado quando toda família se reunia. Duas primas arrumavam a mesa com flores...
Eu estava na praia com ela. O mar encapelado rugia e chacoalhava sua juba de espuma perolada...

Era madrugada quando cheguei em casa, a festa já tinha acontecido, tudo estava calmo e sonolento. Um pote de comida na geladeira com meu nome escrito nele. Ouvi passos, corri para ver... (neste ponto houve um bloqueio mental, não sei dizer o que vi na escada.)

Agora eu estava no banheiro, mais certo seria dizer: estávamos no banheiro. Eu me observava no banho, mas já não era eu, não era... minhas verdadeiras mãos tentavam escapar daquela prisão de vidro, o que eu realmente era estava preso dentro do espelho. Aquele outro agora se secava com a minha toalha, vestia minha roupa e se dirigia ao meu quarto, onde certamente o meu grande amor dormia! No entanto, meus esforços não foram em vão. Quebrei a prisão de espelho e me reuni com meu corpo, o que desencadeou um estranho fenômeno onde os móveis, os livros, as roupas, chinelos, tudo parecia flutuar e rodopiar numa dança macabra, as luzes chispavam relâmpagos que escreviam palavras incompreensíveis na parede e no piso...


Vírus



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Eu sou o toque que transmite o vírus,
teu corpo todo quero possuir,
pois é assim que eu sobrevivo,
eu só preciso me difundir, 
no teu cabelo preto de nanquim
vou expandir o mapa do meu jogo,
quem sabe um dia chegarei ao fim?
quem sabe eu tenha que tentar de novo?

O meu discurso é persuasivo,
quem me despreza vai me conhecer
e cedo ou tarde será consumido
e de repente desaparecer...
Quem acredita ser superior
talvez não saiba o que é ser forte...
quem sabe eu tenha que usar a dor?
quem sabe eu tenha que causar a morte?

Se fatalmente eu te encontrar,
seja no ônibus ou no metrô,
basta um beijo pra te infectar
com o que penso ser o meu amor!
Porque a vida é mesmo assim - cruel.
E todo mundo finge que não sabe!
Porque ninguém quer mais olhar pro céu
pra descobrir o que é eternidade?...

E você pode me chamar de vírus,
a ignorância será  meu prazer
quando teu corpo se tornar cativo
e quando a febre te fizer sofrer,
uma lembrança do seu grande amor
talvez te cure, talvez te conforte.
Quem sabe eu tenha que usar a dor,
Quem sabe eu tenha que causar a morte?

Quem sabe eu tenha que usar a dor,
Quem sabe eu tenha que causar a morte?







Voltei pro mar...



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Voltei pro mar,
o céu fechou.
O desaguar
se aproximou,

Senti verter
da cor a luz,
quis me converter
e abraçar minha cruz.

E agora é questão de tempo.
Agora é questão de tempo...

Meu bem, será
que vai ser fatal?
O que se tornará
transcendental?

A tua voz?
O teu olhar?
Algo que entre nós
quer se libertar...

E agora é questão de tempo.
Agora é questão de tempo.


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Eu vinha grave pelo caminho
quando encontrei um entrevadinho,
que ele era bem tortinho...

Suas mãos cheias de carinho
com um gato feio e sujinho;
um simulacro de estranho ninho...

Sorri um riso apertadinho
e segui um tanto mais sozinho
pisando espinho após espinho...



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às vezes minha bem amada
quando eu digo aquelas coisas
como a história sobre nós dois
sermos dois prometidos do tempo
depois das tuas reações sofisticadas
tenho uma leve impressão de que você preferiria algo de origem canalhística
sem toda essa verborragia pontuada
erroneamente urdida e articulada
pos-romântica pos-modernista pos-bosta decadenciosa prepessimista
retrocesso de vanguarda
e chula fuleira feito mula e nula
que eu dissesse
dissolvendo em três palavras
quero-te-comer
assim mesmo no c(r)u

e em dois segundos já estivesse nu

Os Monges



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Quem do pecado nunca foi culpado
não pode, enfim, aqui nos perceber.
Nós somos monges sob o sol pintado
num mal vitral que ninguém pode ver.

Nós somos monges - magros, esquisitos
que ninguém nota a palidez castanha
dos nossos olhos ternos, mas aflitos
num mal vitral duma capela estranha.

Que ninguém nota o nosso canto aguado
e o dedilhado atravessado insiste,
nós somos cegos sob o sol dourado

no transe eterno, só ele nos assiste
do dolorido ao desacreditado,
do envelhecido, espedaçado, triste...

Suehiro Maruo



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Ela, quando sua banalidade começava a espumar, metia na cabeça que a perseguiam ou pensava ser alvo duma possível possessão demoníaca. Andava de um lado para outro, ansiosa por curar sua falta de distração. Tinha a mania de pegar Elvis, seu yorkshire de 15 anos, aos arrancos. Atirava-o dentro do banheiro, trancava a porta e permanecia ali do lado de fora, com a orelha encostada na porta, até o animal começar a latir, frenético. Às vezes, como bônus, ia até a cozinha e procurava algo para torturá-lo, quase sempre optava por pimenta, vez em quando vinagre. Num dia de tédio total, encheu um balde com água e pedras de gelo, mergulhou Elvis no balde. Enquanto ria de forma estridente, escondia a boca com as mãos num gesto de puro entusiasmo. Ao vê-lo se debater, suas pernas tremiam de euforia, chegou mesmo a se mijar de tanto rir. Ela não era de tudo má, tinha apenas um apodrecimento moral no que diz respeito aos outros e em tratá-los como seus iguais. Elvis acabou morrendo de velhice. Veio a cremação. Principiou um ataque de choro, cheia da mais sincera solenidade, soluçava e limpava o catarro que lhe escorria do nariz pouco cartilaginoso.

Meses após a morte de Elvis, sentiu que uma lacuna crescia cancerosa nas horas em que, absorta, passava vendo TV depois de um dia duro no trabalho. Seu desespero foi tal, que num acesso de fúria, levantou-se de um pulo da poltrona, do mais íntimo do seu cérebro colheu duas palavras: um gato! Precisava de um novo companheiro para suas travessuras desumanas. De pronto, numa segunda-feira cinza e morosa, saiu às pressas do seu emprego de telemarketing, pegou o 298 na altura da Central e soltou no Jacarezinho. Mal podia se conter quando se identificou ao porteiro da Suipa. Lá, passados uns 10 minutos, veio atendê-la dona Josefa, coordenadora dos assuntos ligados à adoção de animais, fez-lhe algumas perguntas protocolares ao tempo que caminhavam em direção ao gatil.

Em casa, com uma calma estranha para sua personalidade vulcânica, pousou o transporte de felinos azul sobre o tapete e o abriu lentamente. Era um gato macho, preto, os olhos como duas esmeraldas cintilantes. "Seu nome, querido, será... Você tem cara de... Hum... Muddy! Igual aquele guitarrista do penteado engraçado!" Dito isso, logo, levou Muddy para a cozinha, apresentou a caixa de areia, os potes de ração e água, deu-lhe um rato felpudo,  tudo comprado antecipadamente num petshop da rua do Matoso.
De início tudo correra bem. Saia às 6 da matina e chegava sempre às 19:30 em casa. Muddy a recebia com voluptuosidade, esfregava-se em suas pernas, vez em quando dava-lhe leves mordidas nos dedos dos pés, o que causava cócegas. Mas algo incomodava em seu olhar perscrutador, ele a encarava de forma altiva, como é comum em todos os gatos. Ela, por sua vez, perguntava: "Qual é, Muddy? Você já tá de barriga cheia!" Entretanto, os dias iam passando e cada vez mais sua irritabilidade crescia com os olhares presunçosos de Muddy.
Certa vez, subitamente, seu desejo compulsivo tornou a aflorar. Era domingo, nas redes sociais seus amigos davam provas de suas felicidades com posts engraçados, seus sorrisos distantes em fotos de família e noitadas de esbórnia, as frases de cunho religioso e raso, as moralidades banais, tudo isso a irritava profundamente. Decidiu voltar às velhas práticas de tortura. Por minutos pensou no que seria mais divertido e prazeroso. Enfim, pegou uma tesoura e cortou os bigodes de Muddy, ele, por sua vez, não esboçou nenhuma reação. Continuou com suas ideias enquanto a noite chegava.  Com um isqueiro acendera uma vela sobre dorso de Muddy, a parafina derretida grudava em seu pelo negro, mas outra vez sem causar espanto. Por fim, decidiu esquentar uma xícara de azeite de oliva. Enquanto ela esperava o azeite atingir a temperatura ideal, Muddy, sentado na mesa, acompanhava todos os seus movimentos, ao contrário de Elvis, que sempre fugia aos berros, ele permanecia no mesmo lugar, às vezes levava uma das patas à boca e penteava com a língua ou bocejava longamente. De repente, como possuída de extrema loucura, atirou a frigideira cheia de azeite fervente na direção de Muddy, o que pareceu surgir efeito, para seu deleite. Ele se debatia e esfregava a cabeça no chão e nas paredes, seu olho esquerdo foi atingido, ficando cego. Vendo o sofrimento que causara, pareceu sentir uma ponta de arrependimento, mas momentâneo.
Ao chegar a hora de dormir, tomou seu banho costumeiro e foi deitar-se. Quando fechou a porta do quarto notou que Muddy a esperava na cama como de praxe, o que lhe deu um misto de repugnância e estranheza. Atirou-lhe um dos chinelos na cara queimada, o que o fez correr para baixo da cama. Deitou-se satisfeita e sorridente. Ainda recordara que o pote de ração de Muddy estava vazio, que ele devia estar com fome.

Naquela mesma noite, como obra do acaso, seu coração negara-se a trabalhar. Morreu sobre a cama, Muddy deitado em seu peito. Ao completar 4 dias de morte, policiais arrombaram sua porta e entraram em seu quarto, jazia um corpo lacerado, aqui e ali marcado a mordidas. Muddy, agora com uma só esmeralda cintilante, exibia sua barriga estufada. Na mesma semana fora adotado por uma professora de Química aposentada. Hoje vive bem sua vida de gato, mas ganhou um novo nome, chama-se agora Pirata.

Violeta Parra



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A minha letra inexpressiva,
é muito séria e deprimente,
não é tão pouco conclusiva
e muito menos coerente.

Não vou falar da minha vida,
do que espero de outro alguém,
a minha alma arrependida
não quer saber mais de ninguém...

Nenhum refrão me vem a mente,
porque não sei pensar sozinho,
meu coração incompetente
ainda espera por carinho...

E que prazer nessa guitarra
enquanto corta lentamente
vou escutar Violeta Parra,
e me envolver num acidente...