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Ando pela calçada da Carioca até a Praça Tiradentes. Meus olhos rasos d'água suja... Penso no completo vazio e quase deixo desabar o ânimo, porque não há vazio completo. Cansei da minha voz macilenta, rancorosa, dos murmúrios internos, mas... sei que não é nada disso.
Procuro poesia nos anúncios pornográficos que se espalham pelos postes e orelhões já obsoletos, mas a poesia é obsoleta. Há travestis lindíssimas que precisam de dinheiro, há instrumentos musicais que são sonho de consumo, há striptease e filmes eróticos a preço de banana, e os cafés antigos sofisticados de poeira, sebos que me sabem desde a infância, há motivo para o desespero.
Aquele coroa de olhar distante... semblante opaco, fronte enrugada... Sento ao seu lado e o acompanho no hábito impuro: "tem isqueiro?"
Examino, sem levantar, o monumento. Que restauração! O velho se despede e enfim deixo acontecer algum tipo novo de choro. Soluço até a derradeira gota.



A Piada



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Quando chorei pela primeira vez
nos braços da mulher que me pariu,
eu já sabia, inconscientemente, 
que é preciso alguma forma de alívio.

Mas depois de tantos anos ainda
inconsciente doutro meio de parir, 
serro meus dentes neste instante incerto
e procuro um motivo pra sorrir.

Vou sorrindo pelas esquinas, louco,
e meu demônio no interior do estômago
se apraz me devorando pouco a pouco... 

Depois de tanta lágrima espontânea, 
pego o espelho e examino, triunfante, 
ninguém a quem se julga importante...

Gotham



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No céu o signo do desassossego
dançando entre as nuvens carregadas,
a noite impera... bélicas trovoadas
cravam o estouro de um baque cego...

Eis o vigilante! O Morcego
no alto do edifício entre as gárgulas,
envolto pelo medo tem seu ego
vingativo... humano... cheio de máculas...

Súbito salta e silva, surpreende
o Louco Clown que ri da sua sorte,
dentro da bruma trava-se o combate!...

Enfim, um punho se ergue e acende
a chama circunstancial da morte...
Ele hesita e o Clown grita: "cheque mate!"

Sudário



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Morreu na esquina da Matoso
com a Dr. Satamini,

nada acontece de novo...
Levaram 3 horas, imagine...

A pele negra sob o pano,
A pele branca sob o pano sujo...


Havia também um despacho.

Maldita encruzilhada, aqui
não há blues... não há blues! Eu acho...

A pele negra sob o pano,
era Jesus? Era Jesus!

3 horas... e aqueles passantes
vaga-lumes mórbidos sem luz...

Nada havia, ia acontecendo...
(E quando o vi fui me estremecendo.)

"Era o Zé? Era o Zé!"
Ai dos homens de grande fé!...

3 horas infindas...
o recolheram perto das 11...

Ficando somente o despacho:
vela vermelha, cachaça e rosa...

*

Resvalou-se a turba curiosa
pelo ralo escoador de populacho...


Testamento



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Deixo uma salva de palmas,
deixo um relicário de almas,
deixo uma noite de calmaria...

Mas exijo! Queimem prosa e poesia!



Romantismo



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I
 
Corria para o quarto do meu avô. Observava, atento, o ninho de pombos da janela... arrulhavam...
Nas mãos um segredo - réstias de pão. Depois do café sempre tinha uma bossa na vitrola, variava entre o Tom e o João, mas eu gostava, digo, eu esperava o sábado, porque o sábado era dia do Chico. Tia Raquel vinha com minhas primas, com seu 7 cordas, seus dedilhados. Então o mundo era dividido ao meio, portais de luz se abriam...
 
 II
 
No terraço havia uma locomotiva. Eu, gigante cruel e demoníaco, trucidava fileiras de soldados de chumbo, barcos de jornal, cacos de tijolo. Nada sobre os trilhos de plástico escapava a seu destino catastrófico... eu só os tinha até a hora do almoço.
 
III
 
Pois, imagine! Certo dia, após o culto, voltamos de ônibus para casa. Ficamos com os bancos do fundo, onde, naquela época, era cadeira cativa de fumantes.
E lá estava um. Meus pais cochichavam reprovações como passarinhos trocam vermes, um para o bico do outro. Era um tipo esguio de olhos fundos e claros, pálido... o cigarro dependurado nos lábios, braços cruzados, pernas esticadas...
Trocamos algumas palavras que não recordo. Segundo dizem, convenci o transgressor do pecado cometido, não aquele contra a sua integridade pulmonar, mas o outro, o mais importante! O incômodo aos outros passageiros.
Depois desse dia uma ideia começou a sapatear com suas pernas de aranha na minha cabeça de vidro e qualquer fumante que eu via tornava-se um possível amigo.


Gárgula



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Tudo observo do meu lugar altivo,
por mim escoam frias lágrimas celestiais
límpidas e lhanas... Não estou vivo,
nada abala a solidão dos ideais

que na pedra foram eternizados...
Quem há de suportar minha aparência;
aspecto de horríveis gritos dados
em estado de rochosa decadência?

Seis da noite, dobram sinos de bronze,
eu testemunho um crime ao longe... Vejo
amantes encontrarem-se num beijo...

................................................................
Nada transpassa o meu degredo frio,
e para sempre cativo silencio...



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Quando do tempo menos se espera
o ato final de uma vida inteira,
eis que acontece - chega a nova era
e o vento nos espalha em poeira...

Hoje não há "luz que se apaga",
nem uma imagem pobre de matriz,
não há um olhar claro que se alaga,
tão pouco um recital mais infeliz...

Que nome em tua boca vai dormir
silenciosamente resguardado?
Nenhum Caronte vai me conduzir
praquilo que me tem angustiado?

Três dezenas de estrelas reluzentes
que aos risos pelo cosmos fundem átomos...
Quando as vejo - meus olhos transparentes
refletem a minha Ilha de Patmos.

Despido... tribunal... o alarde clama
e crepita em minha pele faiscante,
vem a lembrança de quem me ama
e nada mais que isso é importante...