Coração



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Vai e esmaga feito fruta madura 
teu coração - hábil enganador,
que revestindo de uma ideia pura 
traz toda branca a treva da dor...

Eu digo: não! E o coração perjura!
Sorrindo espalha a essência da flor
nessa provável fria sepultura
em que vivera encoberto o amor...

Se de repente percebes ávido,
teu peito cheio de esperanças vis, 
quão de loucura estarás já grávido!?

E ainda sim, pobre de ti, sutis 
serão os quereres deste inválido
que quer fazer de ti tão infeliz...

Quem vai apagar a luz



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I

Deitados os dois, o quarto acesso, tarde da noite, sono, cansaço, apocalipse... Ela levanta, questiona, sustenta a hipótese que traz à tona um trauma; o descaso, o desprezo, como alguém enjoasse de alguém como muda o sabor de gelatina, vídeos de coach de relacionamentos, repete frases, nada mais verdadeiro testifica esses tempos líquidos. 
Trouxe água gelada. Bebemos.
Cada vez mais tenho citado Bauman sem ter lido um só livro. A filosofia do meme, eu sei ser ridículo. O medicamento vai despedaçando em cacos os meus vitrais interiores e todas as artes sacras hora sorriem, hora choram na minha capela. 
Um beijo matutino, gosto de café... Tenho me acostumado a esconder o caos. Onde estará? Talvez tecendo sua teia no mofado do cérebro, alimentando sombras silenciosas. O caos, onde andará seu passo lúgubre?...
Apaga a luz, amor, mais perto do teu lado da cama.

II

Passeio pelo domingo musical. "Every day is like sunday..." Eu me recuso ao cinza. Bonito, senhor Morrisey, sua tristeza cai bem nessa estética oitentista, mas o Smiths nunca mais vai voltar!!(?) Não, nem o Joy Division. (Risos)
Uma raposa correu pelas escadas, ligeira, ligeira, no caminho um gato preto, todo ele cicatriz, conversador canalha e boêmio, né? 
"Já ouviu Ella Fitzgerald? 1957! Que ano!"
Jazz é coisa fina. Uma ova! Cada um ouve o que quer. 
Já já escurece, mas antes tem esse sépia filtrado pelos óculos. 
Então aí está o caos. Criança da noite. Enquanto há silêncio eu me deleito com a trégua, é pausa na comédia. Um espaço para suspirar e contemplar o verde do vale. Domingo de música, teatro sem drama.

Cheio



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Eu digo ao meu amor: ''já não há tempo, invente meu espaço dentro do teu corpo, que enfim me transborde; represa falha, lama e barro, avalanche torrencial de estrelas púrpuras, super novas místicas, imprevistas...
Eu caio sobre meus próprios pés, bêbado de euforia. Logo, por falta de tato, tanto invento mapas, quanto esculpo a madeira invisível que abaúla o tesouro futuro. Rompo tímpanos, cadeados centenários, brando sabres em desertos idílicos buscando o oásis... No fim, do fruto os seus sabores são mentiras agridoces...

Ouço Caetano, segunda feira, salvo a cifra, não é fácil, nem difícil. Quero qualquer coisa que me fuja e me acenda, quero não querer desviar o meu olhar da tua boca. Longitude, entre nós o caos tomou seu trono e decretou sua Lei do não sentido, do amor vivido e não vivido.

Estou cheio, amor. Já devem ter dito os velhos filósofos que a expectativa é o mal, é doença crua. Quero me salvar desse desespero, intento meditações,  emulo mantras da Ásia, esmurro pilares de templos que não caem, nem uma só poeira sobre a cabeça dos príncipes resvala e o riso de toda gente em volta testifica a comicidade da minha total cegueira.

Montei uma playlist de músicas românticas, coisa fina, eu acho. Enquanto qualquer jogo me distrai, recordo que o nome do meu planeta rima com ingenuidade.
Nada é garantido, além do que eu não te digo. Estou repleto, luminescente, pronto a explodir de tudo. Não mais me abalo, me convenço, me obrigo, me escravizo, o mundo me enche e a tua mentira já não é novidade, amor, tua peça é uma reprise às moscas...

Contudo, prazer, não é? Aplausos! Aplausos! Magnífica! 

Vazio



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Sento. Já não espero nada. Pouco importam os itinerários, horários e conduções. Fazia tempo que em meus olhos o ardor do sal não dava as caras. Eu tenho chorado como antes, pelos cantos, por dentro. Engasgo com teu nome na minha boca, cuspo sangue, sorrio... 
É tão triste, amor. Qualquer coisa que ponho aqui eu digo: "é arte". No fim das contas eu vou morrer sozinho, de orgasmo, transando com um anjo nas portas do paraíso. Espero que Deus assista tudo bem quietinho.

Perguntei à doutora: "é normal cogitar pular de ponte, atravessar rodovia de olhos fechados?" Tão jovem a doutora, eu vi que empalideceu de susto, típica burguesa caridosa. Eu fui muito cruel? "Procure um especialista! Mas estamos marcados, até a próxima!" Tão branca a doutora, nunca pôs prego na chinela.

Ligam-me. Atendo. Do outro lado: "Alô, Ivan, Ivan, por favor!" Respondo: "é engano, desista do Ivan!"

Eu digo ao meu amor que estou vazio. Tantas vezes estive vazio que soa uma típica piada de expectativa. Ele vai dizer que existir é um peso, que não há sentido no que não deve ter sentido, que consciência isso, filosofia aquilo, psicologia aqueloutro, que já dizia no livro tal, na página tal, no poema tal que o foda-se tem que ser dado de uma vez, bem no meio da tua cabeça inútil, no meio dessa reprise arrastada...

Agora eu posso deitar e esquecer. Só por um momento esquecer. Larguei o álcool, o cigarro. Eu posso deitar e esquecer...

Lembro-me quando fazia versos sentado na janela da casa abandonada. Eu imitava o Baudelaire, o Cruz e Sousa, o Rimbaud, o Augusto era mais difícil, devido ele ser muito dos anjos. Sentava meu sobrinho na sala e pedia silêncio, eu recitava:

"Quero amar, amar o mar,
tanto amar que me afogar..."

Eu digo ao meu amor que estou vazio... Sento, já não espero nada. Nem o riso vem da expectativa. Não existe piada. Não existe poema. Só o vazio.

Cada um morra com o seu. 

Ao Cavar



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Ainda mais fundo - o odor 
da terra molhada, do suor,
vivo-morto, não sei se entro
ou se saio do meu epicentro...

Fui deposto, decapitado
por esse outro mascarado,
fui decomposto tão lento
sendo soprado pelo vento...

Outro golpe, mais ainda, 
cavando essa cova infinda...
Outro golpe, um baque duro
responde: não, não há futuro! 

O homem é medido todo dia
por seu recurso e serventia...

Ainda mais fundo - o amor 
às vezes é somente se opor...
vivo-morto... me arrastando 
não sei até onde ou até quando...

Clonazepam



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Deito-me lento, soturnamente
envolto em velhas mortalhas rotas
depois de espremer o conta gotas 
que me regula, mas não me sente...

Quero apagar. Então prontamente
como alguém que descalça suas botas
descarto pensamentos idiotas,
e o meu vazio se faz aparente.

Combato o pensamento invasor -
Esse agressor que nunca dialoga,
sempre chapado de alguma droga...

Sempre chapado de alguma droga
meu espírito, hábil galanteador,
morre um pouco, dorme, um pouco afoga... 

Transi



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O Tempo impiedoso, que desconhece
do velho cansaço que te exaspera
ao novo milênio de mais uma Era.
Tempo que inexiste, mas acontece...

Tempo que me toma e que me oferece
o vil desconforto que desespera 
quando a dor se estende por uma espera
que nos enferruja e nos apodrece...

Qual deidade arcana teceu teu signo 
que não é nem bondoso nem é maligno,
O deus primordial da conformidade?

Tens todas as faces da Morte ou Vida
e não tens nenhuma reconhecida,
teu corpo no espaço é a deformidade...


Avulsos Atípicos III



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I

Desce ao fundo abismal, cujo 
teu cérebro arquiteta o estético
teatro da mentira, o mais sujo
anseio de não parecer patético.

II

A mão sempre estendida de horror,
já quase cadavérica, nota-se
a intenção de tocar o interruptor 
onde Deus mandou por o Foda-se!

III

"Apto para exercer a função proposta.
Apto para cumprir, vender, comunicar.
Apto para não perguntar, não dar resposta.
Apto para morrer antes de se adaptar."

IV

Até mesmo um brinquedo retorcido 
pela ação do tempo e da melancolia,
tomado por alguém embrutecido 
encontra alguma estranha serventia...

V
"Fica para trás, retardado!
O silêncio da tua ausência 
será de certo apreciado 
com toda nossa irreverência!"