Do Caos



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Dancei com soldados no vale da Morte,
tornei-me despojo, tesouro e consorte 
do sangue aspergido, do velho transporte,
meu corpo era o nada no centro do Caos...

Eu tive nas mãos a humana trindade:
a Dor, a Esperança e a Finalidade.
Ouvi o seu canto, ergui sua cidade 
altiva e suspensa nas nuvens do Caos...

Da vinha do tempo colhi meu compasso,
bebi do silêncio discreto e devasso
do fim da canção que vibrava no espaço 
o som do meu nome nas cordas no Caos...

Dormi com vencidos no jardim da Vida,
um servo da lágrima por cada caída
e em todo levante era mais despedida 
no adeus do horizonte de eventos do Caos.

Autossabotagem



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Mediano. Nada incomum.
Insisto na praga e a prova
que busco, farto de mim, 
e nada mais me renova...

Despendo e inspiro e flexiono...
– Será que inda não me aprendi?
– Será que inda não me enfrentei?
– Será que não me arrependi?

Que mal, Davi, mas que ruim!
A sentença é prepotente,
sem recurso, sem defesa,
violenta e simplesmente

me atravessa nesse fosso
perfurando todo um dano...
Sempre um autossabotado
afeito a mais desengano.

Chevra Kadisha



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Teus olhos que me abriram buscando tal essência
reconhecida em velhas palavras de espírito,
do recôndito da alma ou eterna dissidência -
teus olhos duas Antares de força e conflito.

Atados pela carne ou pela decadência 
meus ossos encontraste em tudo que foi dito,
em tudo que se enterra por zelo ou influência
da urgência de ser único, mas indescrito.

E como julguei etérea, dessignificada
a origem destas ermas e incautas imagens
na oculta sordidez erguendo suas paragens!

Teus olhos que banharam essa terra ilhada,
afeitos ao meu corpo - comum subserviente
deste rito sagrado e contraproducente.

*

Eclesiastes 5:16

"Há também outro mal, assim esteja atento:
nossa nudez é igual na volta ou na partida,
que vale perseguir o rastro vão do vento
e entregar para o tempo os valores da vida?"





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Toda palavra foi comprimida
dentro de uma sentença reduzida
a uma descrença desequilibrada,
toda letra foi lida e pronunciada,
tudo que é sonoro foi soado 
e o que se deu ao uso foi usado.
Toda tristeza é hereditária 
e essa saudade latifundiária
do que nunca foi verdadeiro e meu,
eu acho que nem mesmo aconteceu 
o anoso mistério que foi revelado 
do que era evidente e significado. 
Tudo que é dor é indiferente 
à delicadeza do amor contundente,
e o líquido amparo da alma é inútil,
nem mesmo a poesia pouco sutil
te diz o que é teu e então te conduz
a qualquer ímpeto de morte ou de luz.
E tudo regido pelo discernimento
se mistura e se funde ao conhecimento,
nada mais é firme aos pés cambaleantes 
e nem mesmo a jura eterna dos amantes
pode enfim traduzir da língua mais ufana
o horror de pertencer à espécie humana.


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Acordo sob nenhum domínio 
e arrasto o olhar
para fora do meu corpo,
minha alma reproduz um estalar 
de dedos a cada ápice, num ritmo
quase vitorioso. Quem dera
ser em mim legítimo
o emprego dos dentes,
no entanto, só recebo notícias 
de um correspondente impreciso...
E me espalho
salvando as migalhas de fome,
a última luz, nobre, morre... 
o sonho
era apenas um nome
dado ao que foi impalpável -
onde as mãos sempre inconstantes  
abarcam todas as distâncias dos céus.


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Brilha a Lua!...
que intenso brilhar!

Noite nua,
quero te namorar...

Cai a estrela,
vem comigo sofrer...

Da janela,
o vento vem dizer:

"Liberdade,
sem prova de valor,

sei que há de
haver algum amor!"

*

Brilha, Lua.
Que inútil seu luzir...

Nessa rua
sozinho vou latir,

sem contexto
e nada a oferecer,

sem pretexto
até para morrer.

Bilhetes de geladeira



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Lembrar de não distribuir poesias.
Ninguém gosta de panfletagem...
além de sujar a cidade, suja
também qualquer dignidade.

*

Abolir a escravatura das interjeições.
Abolir a escritura das presunções.
Abolir a contextura das abolições.

*

Compartilhar um quadro de Van Gogh
só pra dar pinta de que sei de tudo.

*

Comparar-me a um bode
ou a um ipê amarelo desnudo.

*

Rimar amor dor flor calor cor
senhor torpor sabor penhor labor
tambor suor louvor transgressor
com Nabucodonosor...

*

Fazer um solene juramento
ao deus que assobia o vento.

*

Não encher o saco comigo mesmo.

*

Andar mais a esmo.

*

Proibir cigarros coadjuvantes.
Merecem um papel mais fino.

*

Ter a canalhice de cantar um anjo no Juízo Final.

*

Pegar um taxi e pedir ao condutor
que me deixe na esquina do Tempo.

*

Ensinar a um vira latas
qualquer coisa em latim.

*

Aprender o uso dos porquês
antes do desuso do português.

*

Praticar tiro ao alvo no bico de um seio.

*

Nunca tirar um brinquedo de uma criança,
assim como não exteriorizar meu ateísmo.

*

Roer meu osso sem rosnar para outros cães.

*

Dormir pra sempre.
Acordar pra nunca.

*

Pedir perdão por ter chegado com vontade de partir.

*

...pedir perdão porra nenhuma.

*

Ver-me um verme.

*

Não terminar sonetos com versos de ouro...
que tá na moda a ostentação.

*

Não dedicar poemas.
É constrangedor para as 3 partes.

*

Não compor esdrúxulos que caiam na significação popular.

*

Não explicar poemas. Antes nem escrevê-los.
Um poema não se explica nem para a mãe.

*

Consultar o oráculo de Apolo
no templo da Quinta da Boa Vista.

*

Trabalhar duro,
descansar mole.

*

Ser vulgar sem ser sexy.

*

Em caso de um dia acordar morto, seguir minha rotina como se nada tivesse me acontecido.

*

Parar com as drogas, sobretudo a pior, que é ver TV.

*

Parar de não fumar!

*

Parar.


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Trêmulo passarinho,
quem teu cantar minguou
e derrubou seu ninho?

Foi a chuva que magoou
tua asa estranha e torta
impossível de alçar voo?

Pia teu canto, que importa
as queixas da tempestade,
o vento cruel que te corta?...

Pia, que da mocidade
nada mais fica que a mancha,
um borrão na eternidade
que tão fácil se desmancha...