No quarto à meia noite



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Diz ao Vento: – Carrega-me ao horizonte!
Mas responde: – Quem dera, folha morta...
Diz ao Sonho: – Vem, toca minha fronte!
Que se enerva: – Por quê? Não me comporta... 

Pede à Luz: – Desenluta-me, Caronte!
Ela fala: – Só o dracma me importa...
E suplica: – Cai sobre mim, oh, Monte!
O qual soa: – Teu silêncio me conforta.

Será assim? – Concretizo que obedeça.
Que pretende? – Pilhar outra cabeça.
Que medita? – Na dúvida que enflora...

Será o Amor? – Nunca vi, nem tenho visto. 
Por que mentes? – Talvez porque desisto...
O que é a vida? – Um deus que se devora! 

O Destino



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"Ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver, dedico como saudosa lembrança estas memórias póstumas.”

Machado de Assis

Eu tenho um Verme como amigo, 
que sempre ampara meu suplício
quando se chega, meretrício, 
a se enredar no que te digo... 

Verme Destino, não o predigo, 
se bem conheço do teu ofício, 
se vens render da rima o vício
ou vais compor um novo antigo... 

Vejo-o dançar sobre esse lodo, 
a desprezar o Mundo e o Todo, 
moldando Golens para amar-te. 

Teu mal prazer mais nos instiga, 
e nos impõem, logo castiga, 
assim na morte como na arte. 

Apontamentos



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– Aonde é?
– Ali perto daquele moço de bigode.
– Onde mesmo?
– Então, quando você passar pela dona de coque.
– Sim, mas a referência?
– Olha, tá vendo aquele gordo fumante?
– Não, não tô vendo.
– Ao lado daquela puta de mini saia e salto alto.
— A loira?
– Não, essa acha que não está no local...
– A escura? 
– Não, essa está demais no local. 
– Então, seja mais específico.
– Beleza, tá vendo o lixeiro correndo, a caixa do mercado sonolenta, o vendedor de balas paladino, o motorista de ônibus hemofílico, o estudante bolsista, a manicure mãe de cinco, o garçom no primeiro dia de trabalho, tá vendo a velha manca, a coxa, a retinta, a viúva, o velho com a sacola de legumes, com o carteado, com o resultado do bicho, a moça toda de luto, a baiana da feira, o nordestino pedreiro, servente, marceneiro, ladrilheiro, porteiro, brasileiro, o favelado bruto, fetichezado, marginalizado, programado para se orgulhar da própria dor? 
Tá vendo o mendigo maluco, cheirando merda e desprezo, deitado bem no meio da calçada, tá vendo o caramelo lambendo a boca, tá vendo depois da esquina no ponto de ônibus outros perdidos como você?
– Não, não tô vendo não, diz onde fica por favor! 
– Olha, faz um esforço, você tem olhos, diabo!
– Repete que não pesquei... 
– Tá vendo o desnutrido esquálido, o viciado, a horda de crackudos na onda da fome, tá vendo o descaso transfigurado na carne, o Cristo sendo linchado, a zueira dos soldados de Roma, tá vendo o sangue escorrendo sem escândalo na mesma avenida por onde passa o desfile de Carnaval, você tá lendo mesmo esse poema estúpido?
– Olha, não tô vendo mesmo.
– Sabe, irmão, assim fica difícil...

Stims XII



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Toda semana vasculho
nessa estreita plataforma
não o poema, mas a poesia:
essa que não se conforma,

essa que, cosmopolita, 
pretende evocar e morrer, 
té penso ser melancolia 
o que a rigidez vem reger. 

XI



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Envolta de quereres flutuantes, 
recobro amor daquele já perdido 
e como ele tivesse respondido, 
marejo de latências delirantes... 

Em ritmos primevos repulsantes,
dedilho tanto acorde suprimido, 
afogo em tanto azeite desungido 
o cimo de prazeres dissonantes! 

Explodo de urgência descritiva,
por ele que me esquece concussiva,
reverberando baba e compulsão, 

discorro sobre toda solitude,
nesse êxtase da quase infinitude 
que enrama minha boca de amplidão!

A crise do prensado



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Pulei a estação de Costa Barros
pra dar o corre da semana,
peguei o trem sentido Central
e soltei no Jaca, tá ligado?... 

A feira tava malhada e cheia, 
cheiro de amônia, de mofo,
tava galhada, amarronzada, 
tava pelo dobro do que era,
comprei a de vinte, né, 
fiquei meio puto até, 
fazer o que, tá ligado? 

O gosto sujo de mijado, 
no interesse só da venda, 
sem cuidado, violenta 
de teto preto, de brisa ruim 
que não conhece outra opção. 
Daí botei pra ouvir Bezerra, botei mermo... 
Aquele do "É Esse aí que é o Homem" , 
fiz um balão e dei um dois. 
Deu um pigarro desgraçado, 
fazer o que, tá ligado?... 

V O Burguês



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Depois da matinê, no beco podre,
te trombo perfumado em porcelana, 
tentando escapulir por improviso  
ao ver que te propus minha navalha...

De luz lunar tomado, democrata, 
abri na tua boquinha mentolada 
o talho que te ajude na hora sacra 
que tendes a empapar-se do meu nunca. 

Depois de provocar-te o riso horrível, 
te fiz uma cesária com urgência, 
de merda despencaram as tuas tripas... 

Sem mais que te cobrar voltei soberbo, 
dançando pela chuva mais vermelha, 
nutrido do teu gesto de pavor! 

II



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Cavalgando sobre a viração maldita, 
traz aos lábios fresco beijo, sutilmente
emulando um novo amor pra quem medita
deslumbrado, adocicado e adolescente...

Numa treva que entre as trevas é infinita, 
que consome tudo em fome de repente,
estendidas asas de abutre esquisita
que se banha só do sol indiferente...

Tal prazer da carne rasga seu tecido
coligindo o Graal que nunca foi perdido, 
sem matizes, na constância contumaz, 

mas acende sempre o incenso indefinido 
nesse altar deteriorado e desbenzido 
que do corpo se desgraça e se desfaz...