Suehiro Maruo



0 commentaria
Ela, quando sua banalidade começava a espumar, metia na cabeça que a perseguiam ou pensava ser alvo duma possível possessão demoníaca. Andava de um lado para outro, ansiosa por curar sua falta de distração. Tinha a mania de pegar Elvis, seu yorkshire de 15 anos, aos arrancos. Atirava-o dentro do banheiro, trancava a porta e permanecia ali do lado de fora, com a orelha encostada na porta, até o animal começar a latir, frenético. Às vezes, como bônus, ia até a cozinha e procurava algo para torturá-lo, quase sempre optava por pimenta, vez em quando vinagre. Num dia de tédio total, encheu um balde com água e pedras de gelo, mergulhou Elvis no balde. Enquanto ria de forma estridente, escondia a boca com as mãos num gesto de puro entusiasmo. Ao vê-lo se debater, suas pernas tremiam de euforia, chegou mesmo a se mijar de tanto rir. Ela não era de tudo má, tinha apenas um apodrecimento moral no que diz respeito aos outros e em tratá-los como seus iguais. Elvis acabou morrendo de velhice. Veio a cremação. Principiou um ataque de choro, cheia da mais sincera solenidade, soluçava e limpava o catarro que lhe escorria do nariz pouco cartilaginoso.

Meses após a morte de Elvis, sentiu que uma lacuna crescia cancerosa nas horas em que, absorta, passava vendo TV depois de um dia duro no trabalho. Seu desespero foi tal, que num acesso de fúria, levantou-se de um pulo da poltrona, do mais íntimo do seu cérebro colheu duas palavras: um gato! Precisava de um novo companheiro para suas travessuras desumanas. De pronto, numa segunda-feira cinza e morosa, saiu às pressas do seu emprego de telemarketing, pegou o 298 na altura da Central e soltou no Jacarezinho. Mal podia se conter quando se identificou ao porteiro da Suipa. Lá, passados uns 10 minutos, veio atendê-la dona Josefa, coordenadora dos assuntos ligados à adoção de animais, fez-lhe algumas perguntas protocolares ao tempo que caminhavam em direção ao gatil.

Em casa, com uma calma estranha para sua personalidade vulcânica, pousou o transporte de felinos azul sobre o tapete e o abriu lentamente. Era um gato macho, preto, os olhos como duas esmeraldas cintilantes. "Seu nome, querido, será... Você tem cara de... Hum... Muddy! Igual aquele guitarrista do penteado engraçado!" Dito isso, logo, levou Muddy para a cozinha, apresentou a caixa de areia, os potes de ração e água, deu-lhe um rato felpudo,  tudo comprado antecipadamente num petshop da rua do Matoso.
De início tudo correra bem. Saia às 6 da matina e chegava sempre às 19:30 em casa. Muddy a recebia com voluptuosidade, esfregava-se em suas pernas, vez em quando dava-lhe leves mordidas nos dedos dos pés, o que causava cócegas. Mas algo incomodava em seu olhar perscrutador, ele a encarava de forma altiva, como é comum em todos os gatos. Ela, por sua vez, perguntava: "Qual é, Muddy? Você já tá de barriga cheia!" Entretanto, os dias iam passando e cada vez mais sua irritabilidade crescia com os olhares presunçosos de Muddy.
Certa vez, subitamente, seu desejo compulsivo tornou a aflorar. Era domingo, nas redes sociais seus amigos davam provas de suas felicidades com posts engraçados, seus sorrisos distantes em fotos de família e noitadas de esbórnia, as frases de cunho religioso e raso, as moralidades banais, tudo isso a irritava profundamente. Decidiu voltar às velhas práticas de tortura. Por minutos pensou no que seria mais divertido e prazeroso. Enfim, pegou uma tesoura e cortou os bigodes de Muddy, ele, por sua vez, não esboçou nenhuma reação. Continuou com suas ideias enquanto a noite chegava.  Com um isqueiro acendera uma vela sobre dorso de Muddy, a parafina derretida grudava em seu pelo negro, mas outra vez sem causar espanto. Por fim, decidiu esquentar uma xícara de azeite de oliva. Enquanto ela esperava o azeite atingir a temperatura ideal, Muddy, sentado na mesa, acompanhava todos os seus movimentos, ao contrário de Elvis, que sempre fugia aos berros, ele permanecia no mesmo lugar, às vezes levava uma das patas à boca e penteava com a língua ou bocejava longamente. De repente, como possuída de extrema loucura, atirou a frigideira cheia de azeite fervente na direção de Muddy, o que pareceu surgir efeito, para seu deleite. Ele se debatia e esfregava a cabeça no chão e nas paredes, seu olho esquerdo foi atingido, ficando cego. Vendo o sofrimento que causara, pareceu sentir uma ponta de arrependimento, mas momentâneo.
Ao chegar a hora de dormir, tomou seu banho costumeiro e foi deitar-se. Quando fechou a porta do quarto notou que Muddy a esperava na cama como de praxe, o que lhe deu um misto de repugnância e estranheza. Atirou-lhe um dos chinelos na cara queimada, o que o fez correr para baixo da cama. Deitou-se satisfeita e sorridente. Ainda recordara que o pote de ração de Muddy estava vazio, que ele devia estar com fome.

Naquela mesma noite, como obra do acaso, seu coração negara-se a trabalhar. Morreu sobre a cama, Muddy deitado em seu peito. Ao completar 4 dias de morte, policiais arrombaram sua porta e entraram em seu quarto, jazia um corpo lacerado, aqui e ali marcado a mordidas. Muddy, agora com uma só esmeralda cintilante, exibia sua barriga estufada. Na mesma semana fora adotado por uma professora de Química aposentada. Hoje vive bem sua vida de gato, mas ganhou um novo nome, chama-se agora Pirata.

Violeta Parra



0 commentaria
A minha letra inexpressiva,
é muito séria e deprimente,
não é tão pouco conclusiva
e muito menos coerente.

Não vou falar da minha vida,
do que espero de outro alguém,
a minha alma arrependida
não quer saber mais de ninguém...

Nenhum refrão me vem a mente,
porque não sei pensar sozinho,
meu coração incompetente
ainda espera por carinho...

E que prazer nessa guitarra
enquanto corta lentamente
vou escutar Violeta Parra,
e me envolver num acidente...




Arcangélica



0 commentaria
Teu lábio erradia
do verbo a magia
que te contrasta.
Tua língua encerra
um sabor de terra,
uma terra nefasta...

Já não há combate,
nem teu corpo se abate -
nenhum desfalecer.
Não te chega a altura
tua fraca figura,
tua falta de ser.

Amordaça o Desejo,
dilacera esse beijo -
bem me quer, mal te quis...
Teu amor é um defeito
que te infecta o peito
de carências sutis.

Quem dera, Arcangélica,
que essa fome histérica,
violenta e triste,
que tu tens carregado
com tamanho cuidado
como quem não desiste,

Fosse feito em presente
ao futuro indecente
que me espera cair
de joelhos em glória
ao findar uma história
que ninguém quis ouvir.


0 commentaria
Era um dia normal.
Segunda-feira.
Entrei numas de acender fogueira
pra dançar meu ritual de guerra
com os pés descalços
sobre a terra...
Tomei um litro e meio de sangria,
confundi estupidez com rebeldia,
fui ter com os perdidos amizade
e acreditei que existe a liberdade.

Era um dia normal,
ganhei no bicho.
Fiz do que era santo
um capricho,
comi das flores as cores do odor
e o gosto encheu minha boca de torpor,
deitei nesta clareira morna e mística
como um fauno acometido pela tísica,
enfim, um melancólico enojado
de mim, da distância, do planeta, do Estado...


0 commentaria
Posso ver com total clareza?
até onde os meus braços vão?
da minha boca o calor se afasta,
em minha mente pensamentos são

emaranhados em espirais doentes...
Terra infértil... abortados brotam
diante da escultura que eu ergui
para o culto dos que se importam...

E arrasto uma memória ruminal
feito inútil e desgraçado animal,
preso numa velha interrogação...

E ciente do que eu não alcanço
ainda sim inconsciente avanço
até meus pés saírem do chão...



2 commentaria
Ando pela calçada da Carioca até a Praça Tiradentes. Meus olhos rasos d'água suja... Penso no completo vazio e quase deixo desabar o ânimo, porque não há vazio completo. Cansei da minha voz macilenta, rancorosa, dos murmúrios internos, mas... sei que não é nada disso.
Procuro poesia nos anúncios pornográficos que se espalham pelos postes e orelhões já obsoletos, mas a poesia é obsoleta. Há travestis lindíssimas que precisam de dinheiro, há instrumentos musicais que são sonho de consumo, há striptease e filmes eróticos a preço de banana, e os cafés antigos sofisticados de poeira, sebos que me sabem desde a infância, há motivo para o desespero.
Aquele coroa de olhar distante... semblante opaco, fronte enrugada... Sento ao seu lado e o acompanho no hábito impuro: "tem isqueiro?"
Examino, sem levantar, o monumento. Que restauração! O velho se despede e enfim deixo acontecer algum tipo novo de choro. Soluço até a derradeira gota.



A Piada



2 commentaria
Quando chorei pela primeira vez
nos braços da mulher que me pariu,
eu já sabia, inconscientemente, 
que é preciso alguma forma de alívio.

Mas depois de tantos anos ainda
inconsciente doutro meio de parir, 
serro meus dentes neste instante incerto
e procuro um motivo pra sorrir.

Vou sorrindo pelas esquinas, louco,
e meu demônio no interior do estômago
se apraz me devorando pouco a pouco... 

Depois de tanta lágrima espontânea, 
pego o espelho e examino, triunfante, 
ninguém a quem se julga importante...

Gotham



0 commentaria
No céu o signo do desassossego
dançando entre as nuvens carregadas,
a noite impera... bélicas trovoadas
cravam o estouro de um baque cego...

Eis o vigilante! O Morcego
no alto do edifício entre as gárgulas,
envolto pelo medo tem seu ego
vingativo... humano... cheio de máculas...

Súbito salta e silva, surpreende
o Louco Clown que ri da sua sorte,
dentro da bruma trava-se o combate!...

Enfim, um punho se ergue e acende
a chama circunstancial da morte...
Ele hesita e o Clown grita: "cheque mate!"