27 novembro 2023

Cheio

Eu digo ao meu amor: ''já não vem o mundo?"  
Eu caio sobre meus próprios pés, bêbado de euforia. Logo, por falta de tato, invento mapas. No esculpir da madeira que abaúla o tesouro futuro, firo os dedos, que a dor estética dói menos que o martelo e o formão. E rompo.

Ouço Caetano, segunda feira, salvo a cifra, não é fácil nem difícil. Não é Djavan. Quero qualquer coisa que me fuja e me acenda, quero não querer desviar o meu olhar. Longitude, entre nós o caos tomou seu trono e decretou sua Lei do não sentido, do amor vivido e não vivido!

Estou repleto, amor. Já devem ter dito, os velhos filósofos, que a expectativa é o mal. Quero me salvar desse desespero, intento meditações, emulo mantras da Ásia, esmurro pilares de templos que não caem, nem uma só poeira sobre a cabeça dos príncipes resvala e o riso de toda gente em volta testifica a comicidade desta total cegueira.

Montei uma playlist de músicas românticas, coisa fina, eu acho. Enquanto qualquer jogo me distrai, recordo que o nome do meu planeta nem rima.
Nada é garantido, além do que eu não te digo. Estou repleto, luminescente, pronto a explodir de tudo. Não mais me abalo, me convenço, me obrigo, me escravizo, o mundo me enche e a sua mentira já não é novidade, amor, tua peça é uma reprise às moscas.

24 novembro 2023

Vazio

Chego, inspiro e sento. Já não espero nada. Pouco importam os itinerários, horários e conduções. Fazia tempo que em meus olhos o ardor do sal não dava as caras. Eu tenho chorado como antes, pelos cantos, por dentro. Engasgo com teu nome na minha boca, cuspo sangue, sorrio... 
É tão triste, amor. Qualquer coisa que ponho aqui, eu digo: "é arte". No fim das contas eu vou morrer sozinho, nas portas do paraíso vou cantar um anjo, se ele me der condição transo ali mesmo. E que Deus assista tudo bem quietinho! Não é assim seu modus operandi? 

Perguntei à doutora: "é normal cogitar pular de ponte, atravessar rodovia de olhos fechados?" Tão jovem a doutora, eu vi que empalideceu de susto, típica burguesa caridosa. Eu fui muito cruel? "Claro que não é normal! Procure um especialista! Não sou sua médica, mas da sua irmã!" Tão branca a doutora, nunca pôs prego na chinela.

Ligam-me. Atendo. Do outro lado: "Alô, Ivan, Ivan, por favor!" Respondo: "é engano, desista do Ivan!"

Eu digo ao meu amor que estou vazio. Tantas vezes estive vazio que soa uma típica piada de expectativa. "Ele vai dizer que existir é um peso, que não há sentido no que não deve ter sentido, que consciência isso, filosofia aquilo, psicologia aqueloutro, que já dizia no livro tal, na página tal, no poema tal, que o que tem que ser dado de uma vez, tem que ser dado  bem no meio da testa, no meio dessa reprise arrastada, noir de mau gosto...

Agora eu posso deitar e esquecer. Só por um momento esquecer. Larguei o álcool, o cigarro. Eu posso deitar e esquecer. Sem um puto de um cigarro, sem um trago de perfume! Esquecer!... 

Lembro-me quando fazia versos sentado à janela da casa abandonada. Do pé de pinha que minha irmã matou com fogo. Eu imitava o Baudelaire, o Cruz e Sousa, o Rimbaud, o Augusto dos Anjos, o Pessoa, o Mário, o Camilo... (poderia ficar nisso por eras) a Florbela, a Gilka, a Emily, Whitman, Poe, Camões... (ok, parei). Sentava meu sobrinho na sala e pedia silêncio, eu recitava:

"Quero amar, amar o mar
tanto amar que me afogar..."

Eu digo ao meu amor que estou vazio... Levanto, expiro e saio, já não espero nada. Nem o riso vem da expectativa. Não existe piada. Não existe poema. Só o vazio. E nenhuma palavra. Vazio. 

Cada um morra com o seu.

Ao Cavar

Ainda mais fundo - o odor 
da terra molhada, do suor,
vivo-morto, não sei se entro
ou se saio do meu epicentro...

Fui deposto, decapitado
por esse outro mascarado,
fui decomposto tão lento
sendo soprado pelo vento...

Outro golpe, mais ainda, 
cavando essa cova infinda...
Outro golpe, um baque duro
responde: não, não há futuro! 

O homem é medido todo dia
por seu recurso e serventia...

Ainda mais fundo - o amor 
às vezes é somente se opor...
vivo-morto... me arrastando 
não sei até onde ou até quando...

20 novembro 2023

Clonazepam

Deito-me lento, soturnamente
envolto em velhas mortalhas rotas
depois de espremer o conta gotas 
que me regula, mas não me sente...

Quero apagar. Então prontamente
como alguém que descalça suas botas
descarto pensamentos idiotas,
e o meu vazio se faz aparente.

Combato o pensamento invasor -
Esse agressor que nunca dialoga,
sempre chapado de alguma droga...

Sempre chapado de alguma droga
meu espírito, hábil galanteador,
morre um pouco, dorme, um pouco afoga... 

17 novembro 2023

Transi

O Tempo impiedoso, que desconhece
do velho cansaço que te exaspera
ao novo milênio de mais uma Era.
Tempo que inexiste, mas acontece...

Tempo que me toma e que me oferece
o vil desconforto que desespera 
quando a dor se estende por uma espera
que nos enferruja e nos apodrece...

Qual deidade arcana teceu teu signo 
que não é nem bondoso nem é maligno,
O deus primordial da conformidade?

Tens todas as faces da Morte ou Vida
e não tens nenhuma reconhecida,
teu corpo no espaço é a deformidade...


07 novembro 2023

Avulsos Atípicos III

I

Desce ao fundo abismal, cujo 
teu cérebro arquiteta o estético
teatro da mentira, o mais sujo
anseio de não parecer patético.

II

A mão sempre estendida de horror,
já quase cadavérica, nota-se
a intenção de tocar o interruptor 
onde Deus mandou por o Foda-se!

III

"Apto para exercer a função proposta.
Apto para cumprir, vender, comunicar.
Apto para não perguntar, não dar resposta.
Apto para morrer antes de se adaptar."

IV

Até mesmo um brinquedo retorcido 
pela ação do tempo e da melancolia,
tomado por alguém embrutecido 
encontra alguma estranha serventia...

V
"Fica para trás, retardado!
O silêncio da tua ausência 
será de certo apreciado 
com toda nossa irreverência!"



26 outubro 2023

Doppelgänger

Já não tenho meu rosto embrutecido
que julgara exclusivo e consequente,
não me pesa o transtorno diligente 
de ser suficientemente fingido...

O outro-meta está sempre à minha frente
no impalpável toque de Narciso,
cada passo me espalha o sangue quente 
e meu rastro esvanece - impreciso...

Será também banal a dor e idêntica
a tua dor? Meu igual, seria autêntica
tua fome, insistência e desconforto?

Quem me dera alcançar-te e antropofágico 
encontrar-me em teu fim, num riso trágico
e sermos logo um só - silêncio morto...

20 outubro 2023

Para o Náufrago

Tela de óleo, alma do Luar!
Barco ancorado em nuvens 
que a propósito, tão inúteis,
não chovem a tristeza que tens.

Quem te dera, deslocado,
saber-te breve como a infância 
que tu não cansas recordar 
cheio de insignificância.

Nada em ti te pertence,
embora busques certezas 
que enfeitam tardes vazias 
com falsas e frágeis grandezas.

Nada em ti vale o esforço 
de cumprir o que é prometido...
Que destino será naufragar
sem jamais haver partido?!