Cronologia



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Primeiro era o Espírito, todo ele preto, pairando sobre a meia noite. Verbo jovial e místico, empoleirado rebelde reverenciador dos libertinos mortos. Era detalhista dos simbolismos pós qualquer, tolo em meninice, fraco sublimado pela culpa, vomitório de caras paixonites desarticuladas, fanático por tudo que torpe lhe enaltecia o tédio mais fino, mais breve, mais falso. Sulcado pela ânsia venturosa de um desfecho ultra romântico, tencionava o suicídio por qualquer crise de tosse ou consciência; Ofélia boiando em fluído amniótico, um borra botas inveterado, que, embora mórbido e latente o seu intento engordasse, nunca o dera a cabo por nenhuma ação. Qual foi sua surpresa em descobrir-se, supondo que antes não soubera, que já não tinha em si, como prenúncio cru e lógico, as pistas apontando para seu crânio herdeiro de uma insanidade patriarcal, que já não metia nos bolsos seus prospectos encardidos de autopiedade e pretensa confissão. Bêbado arrogante até o talo. O hábito de cometer sandices o acompanhava firme, vivo e irmão. Sussurrava-lhe ao pé do ouvido o que era então, talvez, o zéfiro causador da sua febre e alucinação.
Depois de queimar sacrifícios à própria deformidade, veio o vislumbre da Essência, noiva de si; termo démodé impregnado de profundeza inócua, dado a tudo que precise de um núcleo impalpável, gasto por andar de boca em boca, atendendo a pedidos de quem quer santificar o cerne do que julga ser bom. Aqui e além brandia o sabre da alegoria, não do que era, mas do que poderia ser. Buscava abarcar o mundo e dava no bairro mais óbvio, crendo na predestinação que mais lhe aprazia, pensava ser outro, mas era o Espírito conformado, travestido e enganador, megalomaníaco de bar revirando os olhos e gavetas numa cruzada nova, por motivos turvos, aqueles... 
De tudo que era, logo mais, deu-se no próximo: A Negação. O Nada. Que menos seria? Submerso em toda aquela complexidade bostal, sentia-se satisfeito, sorria-se ao enfeitar de quadros sublimes sua estupidez social, nunca alcançara prazer igual. Arquiteto da inconstância, ali cansou-se de tudo, pôs fim a tudo, derrubando os sustentáculos daquela grande construção - miragem paupérrima, nem servia aos pombos como ninho e proteção.
Hoje, em suma, assume algum controle sobre um corpo irregular e trabalha. Mantém a mania de colecionar papeis amestrados em gavetas raras e velhas, mas o faz por motivos medicinais, assim o diz. Não entra em contato, despreza. É o sumido, duro de peito, boceja para os problemas de família, faz quase tudo por uma ninharia, engole dúzias de sapos aos borbotões, nega cigarros a indivíduos suspeitos na estação de trem às 6 da manhã, faz menção de ser rude, mas tem piedade. No entanto, mal sabem, pensa ainda em dividir o maior amor do mundo.

Nuvem



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Acordo cansado
e nesse cansaço
em que me condenso
encontro o estado
de um vago compasso
e fico suspenso

no sonho que todo
sufoca-me mudo
o corpo sem massa
e o súbito lodo
expele-me tudo
sou nuvem que passa

já nada me espanta
na minha garganta
ressoa um som rouco
por tua beleza
inútil tristeza
decreto - estou louco

e fico mais velho
eu fumo e espero
num banco de praça
e vejo teu rosto
que lindo seu rosto
na nuvem que passa


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O que há de espetáculo num dia de outono em um ano vil? Se do receptáculo algum ser de carne se evadiu, e, embora ainda disforme arraste as asas da sua conduta, crendo tornar-se verme mais óbvio que um filho da puta, desenlaça, para lá da casa dos vinte, alguma soma nos poucos anos de pedinte.


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Quando lembro das cartas,
estúpidas canções
dão play no meu córtex,
dizia: "quase ninguém ouviu!..."
Ah, como eu era imbecil!

Os meus poemas, (deus, poemas?)
eram ouro, prata e bronze,
que, choroso, lhe entregava,
dizia: "olha, ninguém mais sentiu!..."
Porra! eu era muito imbecil!

De fato, taciturnamente,
entrego-me ao delírio, tal
é a minha fortuna em mim...
Penso: "tudo e mais se extinguiu..."
.......................................................



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Abril, sol, fones de ouvido
derretendo o pior punk rock,
preciso de grana... cama...
de um choque!

E pego a próxima saída?
pra nada
o dia me serve!... Por que
você é tão triste e calada?

Uma coincidência estranha –
tem alguém que deixa pistas
à margem das conspirações
niilistas...

Porém, vou colhendo seus cacos:
rastro musical que acena
à noite.
Teu pio de coruja, tua pena...

1989



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Gisela dos Abrolhos,
quem soube decifrar-te
ao ver como seus olhos
corriam pelo encarte?

Ao ver como escolhos
os versos à la carte –
Gisela, pra seus olhos
era a arte pela a arte?

Erraste pelos portos
citando algum Pessoa,
com seus scarpins tortos
em forma de canoa,

seguida pelos mortos
pedestres da Lagoa,
Gisela Desconfortos,
sapatos não tem proa...

*

Dançavas com a bruma
dos becos infestados,
sorveste toda espuma
dos lábios fermentados.

Não há surpresa, em suma,
dos marginalizados
és mais do que mais uma
que dançou nos dois lados...

Ensaio sobre as Musas



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São sugestões de sintonias cúmplices, 
pois que antes fossem melodias íntegras 
do que esta dose de opioides súbitos, 
do que este roxo sobre veias práticas... 
Se trazem chances ao pior dos tímidos, 
que se acovarda ante a grande dúvida, 
tão logo o traem em promessas sórdidas 
de mais futuros promissores débitos... 
Adeus e adeus – multicurvas pétalas, 
adeus e adeus – desamores clássicos... 
As seduções dos limiares tácitos, 
quer sejam banhos de suaves ósculos, 
quer sejam fogos de artifícios fálicos, 
quer sejam loas de tristezas múltiplas – 
as seduções dos afluentes trágicos 
que escorrem longas melodias úmidas, 
que antes fossem solidões implícitas 
do que este surto de segundos zéfiros... 
São elegidas entre as horas ápices 
as horas cruas de certezas nítidas, 
as horas frias de rosáceas góticas, 
as horas cheias de princípios lógicos, 
são prometidas aos febris neófitos 
e ensejadas por incautos Sísifos, 
são destiladas em modorras íntimas 
e morrem salvas de abalos sísmicos...


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Vou indo bem.
Abro a porta tramando talvez duas plantas,
nessas horas em que, simplesmente, 
elas deveriam estar lá.
Do lado de fora perguntam 
se estou dormindo.
Ninguém suspeita do que existe
dentro de um tempo fraudulento
como uma mágoa que insiste
eu tento
e quase por um momento...

São metáforas inúteis que
me caem tão bem – criancinhas
permutam-se psicodélicas
e tomam serenos à noite...
Vou indo bem. 
Rascunho nuvens a lápis 
no meio do plano de fuga,
traço acrobacias por cima 
de telhados coloniais,
antevejo cenas de comédia:
os perfumes se entreolham puritanos,
as bijuterias corruptoras dissimuladas,
papeizinhos amestrados
guardam-me fragmentos asfixiados,
meus gatos, meu orgulho, 
meu deus que perambula...
Que comédia de se rir até das portas!
Um filme mudo que repete um gesto lento
e quase, quase por um momento...
 
Desço por mim em caracóis escadas,
mas esse jogo inútil de mãos
que não me serve equilíbrio
vai contornando o acesso...
Quando o amor é apenas um jogo
deve-se pois amarrá-lo e por fogo,
porque ele se apraz ao deitar o meu corpo consigo
e o meu corpo se deixa cortar pelo melhor inimigo...

Não que me importe a intenção
no alinhamento dos astros,
nem os perfumes das plantas:
obras de algum filantropo,
eu não me desço os degraus
em busca do principado
ou me embebedo das práticas
da irresponsabilidade...
Porque eu vou bem, afinal
permutam-se novas imagens,
chocam-se as sensações
em todos os receptores
e nada me faz repousar
em pastos verdejantes
e todos os lobos retornam
com olhos por cima dos montes...


Eu sou em mim um intruso,
me cobro deslumbramento,
penso que sei me expulsar
de mim em qualquer momento.