6 de out. de 2019

Suehiro Maruo

Ela, quando sua banalidade começava a espumar, metia na cabeça que a perseguiam ou pensava ser alvo duma possível possessão demoníaca. Andava de um lado para outro, ansiosa por curar sua falta de distração. Tinha a mania de pegar Elvis, seu yorkshire de 15 anos, aos arrancos. Atirava-o dentro do banheiro, trancava a porta e permanecia ali do lado de fora, com a orelha encostada na porta, até o animal começar a latir, frenético. Às vezes, como bônus, ia até a cozinha e procurava algo para torturá-lo, quase sempre optava por pimenta, vez em quando vinagre. Num dia de tédio total, encheu um balde com água e pedras de gelo, mergulhou Elvis no balde. Enquanto ria de forma estridente, escondia a boca com as mãos num gesto de puro entusiasmo. Ao vê-lo se debater, suas pernas tremiam de euforia, chegou mesmo a se mijar de tanto rir. Ela não era de tudo má, tinha apenas um apodrecimento moral no que diz respeito aos outros e em tratá-los como seus iguais. Elvis acabou morrendo de velhice. Veio a cremação. Principiou um ataque de choro, cheia da mais sincera solenidade, soluçava e limpava o catarro que lhe escorria do nariz pouco cartilaginoso.

Meses após a morte de Elvis, sentiu que uma lacuna crescia cancerosa nas horas em que, absorta, passava vendo TV depois de um dia duro no trabalho. Seu desespero foi tal, que num acesso de fúria, levantou-se de um pulo da poltrona, do mais íntimo do seu cérebro colheu duas palavras: um gato! Precisava de um novo companheiro para suas travessuras desumanas. De pronto, numa segunda-feira cinza e morosa, saiu às pressas do seu emprego de telemarketing, pegou o 298 na altura da Central e soltou no Jacarezinho. Mal podia se conter quando se identificou ao porteiro da Suipa. Lá, passados uns 10 minutos, veio atendê-la dona Josefa, coordenadora dos assuntos ligados à adoção de animais, fez-lhe algumas perguntas protocolares ao tempo que caminhavam em direção ao gatil.

Em casa, com uma calma estranha para sua personalidade vulcânica, pousou o transporte de felinos azul sobre o tapete e o abriu lentamente. Era um gato macho, preto, os olhos como duas esmeraldas cintilantes. "Seu nome, querido, será... Você tem cara de... Hum... Muddy! Igual aquele guitarrista do penteado engraçado!" Dito isso, logo, levou Muddy para a cozinha, apresentou a caixa de areia, os potes de ração e água, deu-lhe um rato felpudo,  tudo comprado antecipadamente num petshop da rua do Matoso.
De início tudo correra bem. Saia às 6 da matina e chegava sempre às 19:30 em casa. Muddy a recebia com voluptuosidade, esfregava-se em suas pernas, vez em quando dava-lhe leves mordidas nos dedos dos pés, o que causava cócegas. Mas algo incomodava em seu olhar perscrutador, ele a encarava de forma altiva, como é comum em todos os gatos. Ela, por sua vez, perguntava: "Qual é, Muddy? Você já tá de barriga cheia!" Entretanto, os dias iam passando e cada vez mais sua irritabilidade crescia com os olhares presunçosos de Muddy.
Certa vez, subitamente, seu desejo compulsivo tornou a aflorar. Era domingo, nas redes sociais seus amigos davam provas de suas felicidades com posts engraçados, seus sorrisos distantes em fotos de família e noitadas de esbórnia, as frases de cunho religioso e raso, as moralidades banais, tudo isso a irritava profundamente. Decidiu voltar às velhas práticas de tortura. Por minutos pensou no que seria mais divertido e prazeroso. Enfim, pegou uma tesoura e cortou os bigodes de Muddy, ele, por sua vez, não esboçou nenhuma reação. Continuou com suas ideias enquanto a noite chegava.  Com um isqueiro acendera uma vela sobre dorso de Muddy, a parafina derretida grudava em seu pelo negro, mas outra vez sem causar espanto. Por fim, decidiu esquentar uma xícara de azeite de oliva. Enquanto ela esperava o azeite atingir a temperatura ideal, Muddy, sentado na mesa, acompanhava todos os seus movimentos, ao contrário de Elvis, que sempre fugia aos berros, ele permanecia no mesmo lugar, às vezes levava uma das patas à boca e penteava com a língua ou bocejava longamente. De repente, como possuída de extrema loucura, atirou a frigideira cheia de azeite fervente na direção de Muddy, o que pareceu surgir efeito, para seu deleite. Ele se debatia e esfregava a cabeça no chão e nas paredes, seu olho esquerdo foi atingido, ficando cego. Vendo o sofrimento que causara, pareceu sentir uma ponta de arrependimento, mas momentâneo.
Ao chegar a hora de dormir, tomou seu banho costumeiro e foi deitar-se. Quando fechou a porta do quarto notou que Muddy a esperava na cama como de praxe, o que lhe deu um misto de repugnância e estranheza. Atirou-lhe um dos chinelos na cara queimada, o que o fez correr para baixo da cama. Deitou-se satisfeita e sorridente. Ainda recordara que o pote de ração de Muddy estava vazio, que ele devia estar com fome.

Naquela mesma noite, como obra do acaso, seu coração negara-se a trabalhar. Morreu sobre a cama, Muddy deitado em seu peito. Ao completar 4 dias de morte, policiais arrombaram sua porta e entraram em seu quarto, jazia um corpo lacerado, aqui e ali marcado a mordidas. Muddy, agora com uma só esmeralda cintilante, exibia sua barriga estufada. Na mesma semana fora adotado por uma professora de Química aposentada. Hoje vive bem sua vida de gato, mas ganhou um novo nome, chama-se agora Pirata.