30 de jan. de 2023

Acordo sob nenhum domínio 
e arrasto o olhar
para fora do meu corpo,
minha alma reproduz um estalar 
de dedos a cada ápice, num ritmo
quase vitorioso. Quem dera
ser em mim legítimo
o emprego dos dentes,
no entanto, só recebo notícias 
de um correspondente impreciso...
E me espalho
salvando as migalhas de fome,
a última luz, nobre, morre... 
o sonho
era apenas um nome
dado ao que foi impalpável -
onde as mãos sempre inconstantes  
abarcam todas as distâncias dos céus.

29 de jan. de 2023

Carta II

Não me vês. Qual o sentido de mentir quando a obviedade dos fatos é tão sólida e fria? Ah, quanto mistério faz ninho nessa árvore hirsuta da consciência humana! 

Não me vês contorcer os neurônios em busca de silêncio de mim, de alívio de ser - alienígena! Desprezado o signo da minha alma reclama o que nunca foi promessa em sua voz.

Outrora a juventude resplendia o dulçor da novidade quente, instigante. Como era pobre e insignificante a existência que se mantinha firme em meus cadernos velhos, debatidos.

Nunca me viste. O que pensavas ser capaz de emoldurar na tua visão ideal? Algum nativo, idílico e selvagem, cantando palavras de ordem e coragem, olhos em chamas, músculos vibrantes rítmicos, gargantas aos berros nas fileiras da ânsia primeva do combate?!

Não me lês. É fato, mas não desanimes. Nem me julgues ingênuo a ponto de te crer desperta enquanto amputo em convicta mudez essas e outras orações.

Brilha a Lua!...
que intenso brilhar!

Noite nua,
quero te namorar...

Cai a estrela,
vem comigo sofrer...

Da janela,
o vento vem dizer:

"Liberdade,
sem prova de valor,

sei que há de
haver algum amor!"
*
Brilha, Lua.
Que inútil seu luzir...

Nessa rua
sozinho vou latir,

sem contexto
e nada a oferecer,

sem pretexto
até para morrer.

28 de jan. de 2023

Bilhetes de geladeira

Lembrar de não distribuir poesias.
Ninguém gosta de panfletagem...
além de sujar a cidade, suja
também qualquer dignidade.

*

Abolir a escravatura das interjeições.
Abolir a escritura das presunções.
Abolir a contextura das abolições.

*

Compartilhar um quadro de Van Gogh
só pra dar pinta de que sei de tudo.

*

Comparar-me a um bode
ou a um ipê amarelo desnudo.

*

Rimar amor dor flor calor cor
senhor torpor sabor penhor labor
tambor suor louvor transgressor
com Nabucodonosor...

*

Fazer um solene juramento
ao deus que assobia o vento.

*

Não encher o saco comigo mesmo.

*

Andar mais a esmo.

*

Proibir cigarros coadjuvantes.
Merecem um papel mais fino.

*

Ter a canalhice de cantar um anjo no Juízo Final.

*

Pegar um taxi e pedir ao condutor
que me deixe na esquina do Tempo.

*

Ensinar a um vira latas
qualquer coisa em latim.

*

Aprender o uso dos porquês
antes do desuso do português.

*

Praticar tiro ao alvo no bico de um seio.

*

Nunca tirar um brinquedo de uma criança,
assim como não exteriorizar meu ateísmo.

*

Roer meu osso sem rosnar para outros cães.

*

Dormir pra sempre.
Acordar pra nunca.

*

Pedir perdão por ter chegado com vontade de partir.

*

...pedir perdão porra nenhuma.

*

Ver-me um verme.

*

Não terminar sonetos com versos de ouro...
que tá na moda a ostentação.

*

Não dedicar poemas.
É constrangedor para as 3 partes.

*

Não compor esdrúxulos que caiam na significação popular.

*

Não explicar poemas. Antes nem escrevê-los.
Um poema não se explica nem para a mãe.

*

Consultar o oráculo de Apolo
no templo da Quinta da Boa Vista.

*

Trabalhar duro,
descansar mole.

*

Ser vulgar sem ser sexy.

*

Em caso de um dia acordar morto, seguir minha rotina como se nada tivesse me acontecido.

*

Parar com as drogas, sobretudo a pior, que é ver TV.

*

Parar de não fumar.

*

Parar.

27 de jan. de 2023

Trêmulo passarinho,
quem teu cantar minguou
e derrubou seu ninho?

Foi a chuva que magoou
tua asa estranha e torta
impossível de alçar vôo?

Pia teu canto, que importa
as queixas da tempestade,
o vento cruel que te corta?...

Pia, que da mocidade
nada mais fica que a mancha,
um borrão na eternidade
que tão fácil se desmancha...

Emily Dickson

Ao vê-la eu diria certamente:
como esta mulher está doente!
Assim nadando raso, convicto 
me tornaria mais um pobre adicto.

Ela está longe, intocável - aceito
que para a morte ter o seu efeito
seja comum a versatilidade 
em nos tirar a força e a vontade...

Branca e reclusa, atenta a seu catálogo,
transcreve a flora do seu amor análogo 
à noite turva que liberta a melodia 
da solidão que lhe impõe melancolia...

Ao vê-la de mudez ser encrustada
eu lhe diria: Emy, é uma nova estada 
entre outros dias mais, consecutivos,
é uma pena que ainda estamos vivos.

20 de jan. de 2023

Bloco de notas

Prático.
Salvo em nuvem,
uma senha, login, corretor ortográfico.
Abro uma aba de inveja 
outra de receita low carb,
abro uma aba e te vejo
para esmurrar a distância.

Vou catando signos nesta reciclagem 
e os organizo em cores.
Ah, que vaidade,
quando encontrarem 
tanto desvalor descrito,
tudo arrumado assim
com a pretensa intenção 
de um romantismo póstumo...

Quem ainda escreve verso, meus deus?!
Faço isso, talvez,
para ter uma prova cabal 
de que ainda não sou um robô...
Numa aba a Segunda Guerra,
noutra The Animated Series,
numa aba a teu novo colorir,
noutra a música que eu ainda não aprendi.

18 de jan. de 2023

Quadros

1

Chega o trem. Não há lugar.
Uma após outra as estações...
Cotidiano. Objetivo. 
De quando em quando 
um peixe entre as redes sociais -
Sobre esses palcos nós somos 
as vítimas das comparações.
Que pena. Não há lugar.

Chega ao trabalho. Bate o ponto.
Tudo é normal, tudo. Tudo é tão barulhento.
Tudo é tão mudo. 
Não há lugar.
Está sorrindo, comendo, fodendo...
Está dançando e cantando, lendo, estudando...
Está mamando um estranho miserável,
está bebendo todas e como antes
chega o fim de semana. Bate o ponto.

Não há lugar? 
Em casa dorme e sonha,
acorda e banho, café e sai.
E chega o dia do salto e quem diria;
não era ela "a feliz"?

2

Então é a fama isso. O sucesso aquilo.
Todas as drogas, todos os vícios.
Novos paraísos efêmeros, alegorias
aos seus pés de barro...
O vazio - o deus cansado, irmão 
do tédio, da doença e do fim.
E a solidão traz a bandeja dos fracassos
para servir a sua alteza inútil.
E de repente, sem mais...
Logo ele que tinha tudo. Todas as drogas.
Todos os vícios...

3

Foi previsível. Depois da traição,
da vergonha, do medo.
Depois de ser enxotado - um cachorro 
sem previsão de nada. Depois
de todo aquele drama infinito e cômico.
Toda a família esperava.
Seria o quê? 
Um tiro? Overdose? Veneno? 
A corda e um nó?

Não teve graça. Só isso.
Nunca tem.

4

Sempre uma foto. Uma frase. 
Ela desafia o limite do positivismo. 
Que ingênua! Eles julgam.
A herdeira das máscaras carnívoras
que mastigam suas faces decadentes.

Sempre um bem adquirido, valores
da família de bens. Outro álbum 
impoluto e branco sobre a mesa,
outra carreira de pó adquirida
e o coração sedento 
por desejo mais humilde
cede ao fim.