31 de dez. de 2023

Casa Amarela

É noite. Guarda, amor, meu nome clausurado,
selado à sete chaves atrás da tua porta...
Jamais soubeste o quanto tenho ocultado 
nessas linhas febris, quanta melodia morta...

É noite nos jardins do teu doce cuidado,
traz à memória a essência, que nada conforta...
Se te vejo sorrir como tenho sonhado
não respondo por mim e pouco mais importa...

Estou preso, não vês? Melancólico a esmo,
divago a procurar-te dentro de mim mesmo
e por vezes me perco girando espirais...

É noite e ao longe acena minha alma, flutua 
sobre o mar da saudade compulsiva e crua
de nunca mais te ter, de nunca, nunca mais...

15 de dez. de 2023

Carta VIII

Sabe, esse tipo de psicose, esse tipo aqui, leva qualquer um a converter-se. 
Comigo? Não. Pergunte a quem for: "ele crê?" te dirão: "ele é quem?"
Atravesso meio Rio até Botafogo. Acredita, na última eu me abri à doutora. 26 anos a doutora. Residente. Que desespero, meu querido, meu adorável cerebelo! Porque não te metes a dar com tua massa na parede até que te escorra pelo esgoto?...

Já sentiu vontade de dar com a cabeça no maciço? Era prática comum, na longe década, dar murros em aparelhos cansados de trabalhar: "vamos! (porrada) que a novela já vai começar, devia ter comprado uma Sharp!" 
Bem, certamente a doutora está cumprindo a burocracia do receituário. Proletária, tadinha. "Daqui três anos sou psiquiatra, lá com 29!" Disse sorrindo, ainda branca demais pra comer tutu. 

Então meu amor, minha gatinha, veio com umas de que eu preciso mesmo de ajuda. Ainda sou infante pra certo tipo de sarcasmo, como um arruinado mental precisaria de ajuda? Não! Devo correr nu pedindo pontapés no meio dos olhos! Um cuspe, um escarro por favor, que ainda é pouco a nota dó que se repete constante ao fundo, o bar fechou e eu ainda danço...

Algumas vezes pude até sentir o cheiro de podre, feito um anúncio da profecia familiar. Costumo vomitar nos outros, depois reflito: "é, vomitei..." Como se o óbvio usurpador não se contentasse apenas em dar o golpe de estado no absurdo.

Ano que vem talvez eu tente contato. Em meu planeta não existem pedras pontiagudas debaixo dos elevados...

13 de dez. de 2023

Desenhos da Infância

Olhos entreabertos de sangue pisado,
um corpo de um gigante decapitado,
demônios nus em posições estúpidas
sobre o montante de carcaças pútridas...
Tesouras aladas serrilhadas 
amputando asas pétalas de fadas...
Uma casa, janela de madeira, vaso de flor,
sob o sol sorridente a se pôr...

Pedras multiformes munições 
para fundíbulas assassinas de dragões,
pântanos borbulhantes onde notívagos
vampiros procuram por novos afagos...
Olhos de gatos acesos, julgadores...
Onomatopeias de choques multicores...
Uma cachoeira de luz efervescente 
onde as sombras observam a água corrente...

10 de dez. de 2023

Carta VII

Sob signo de Hécate, sua serva maldiz a árvore onde os nossos nomes foram talhados. A morte vem de assombro sobre um corcel de bronze e ressoam dobres fúnebres, enquanto uma a uma folhas murchas precipitam dores abortivas, poemas e canções sobre o silêncio. "Ah, maldita seja, mil vezes mais!"
Passo um tempo remoendo o amargor da sua ausência astuta. A tua escolha retorce os meus galhos em direção contrária, um estado de torpor onde a entrega do fruto e da flor é antinatural. "Veja aqui, aponto uma raiz podre..."

Tão relativa é a distância. Quando me podei crendo provocar saudade, jovial, guardei a voz de qualquer intento... Já são tantas estações, tempestades noturnas, quentes e frias, alardes emprenhados de inutilidade, "socorro! Deus! Me ajuda!" Desenho bocas multiformes para texturar janelas fechadas... E é tanto, tanto desabrigo.

Ganhar a vida, né? É o que se diz. Eu que te devo tudo, reproduzo aqui a arte desenstrumental do abismo, um auto retrato negativo, na língua dos anjos abusivos o canto célebre e opaco, colagem de notas dissonantes a favor do orgulho ressentido. Está pago e não te devo mais nada!

9 de dez. de 2023

Avulsos Atípicos IV

I
Faça filhos - dádivas, presentes...
Para que, Jesus, se planejar? 
Para que escovar os dentes?
Para que comer, beber, pensar?...

II
Existe um "eu" que pensa - um conceito 
que aprendi num livro sobre autismo,
e existe um "eu" ativo, um "eu" perfeito 
que faz e quer fazer - que romantismo!

III
Pessoas são bocas. Pessoas são 
o abrir e fechar de lábios eloquentes,
mantenho o foco - lá fora um furacão
passa... E nós seremos confidentes...

IV
Olhar em teus olhos é como despir-te 
tão lento quanto um pulso cardíaco.
Olhar em teus olhos é como cobrir-se
de um encanto, de prazer demoníaco...

V
Trabalho! Eis o deus, venere-o já!
Quanto mais teu sangue ele suga
mais do teu sangue ele desejará...
Não há descanso, tempo, amor, fuga...

VI
Sete horas da noite, minh'alma desertora
debanda para os mundos abissais, 
deixando uma desordem promissora 
engasgada nas minhas cordas vocais...


8 de dez. de 2023

Coração

Vai e esmaga feito fruta madura 
teu coração - hábil enganador,
que revestindo de uma ideia pura 
traz toda branca a treva da dor...

Eu digo: não! E o coração perjura!
Sorrindo espalha a essência da flor
nessa provável fria sepultura
em que vivera encoberto o amor...

Se de repente percebes ávido,
teu peito cheio de esperanças vis, 
quão de loucura estarás já grávido!?

E ainda sim, pobre de ti, sutis 
serão os quereres deste inválido
que quer fazer de ti tão infeliz...

3 de dez. de 2023

Quem vai apagar a luz

I

Deitados os dois, o quarto acesso, tarde da noite, sono, cansaço, apocalipse... Ela levanta, questiona, sustenta a hipótese que traz à tona um trauma; o descaso, o desprezo, como alguém enjoasse de alguém como muda o sabor de gelatina, vídeos de coach de relacionamentos, repete frases, nada mais verdadeiro testifica esses tempos líquidos. 
Trouxe água gelada. Bebemos.
Cada vez mais tenho citado Bauman sem ter lido um só livro. A filosofia do meme, eu sei ser ridículo. O medicamento vai despedaçando em cacos os meus vitrais interiores e todas as artes sacras hora sorriem, hora choram na minha capela. 
Um beijo matutino, gosto de café... Tenho me acostumado a esconder o caos. Onde estará? Talvez tecendo sua teia no mofado do cérebro, alimentando sombras silenciosas. O caos, onde andará seu passo lúgubre?...
Apaga a luz, amor, mais perto do teu lado da cama.

II

Passeio pelo domingo musical. "Every day is like sunday..." Eu me recuso ao cinza. Bonito, senhor Morrisey, sua tristeza cai bem nessa estética oitentista, mas o Smiths nunca mais vai voltar!!(?) Não, nem o Joy Division. (Risos)
Uma raposa correu pelas escadas, ligeira, ligeira, no caminho um gato preto, todo ele cicatriz, conversador canalha e boêmio, né? 
"Já ouviu Ella Fitzgerald? 1957! Que ano!"
Jazz é coisa fina. Uma ova! Cada um ouve o que quer. 
Já já escurece, mas antes tem esse sépia filtrado pelos óculos. 
Então aí está o caos. Criança da noite. Enquanto há silêncio eu me deleito com a trégua, é pausa na comédia. Um espaço para suspirar e contemplar o verde do vale. Domingo de música, teatro sem drama.