27 de set. de 2023

Construção

Primeiro, definido o espaço
e o tempo para o emprego das mãos,
o sonho da não indigência
e do não desespero noturno
em cada vez que se cogita a presença do despejo 
atrás de uma porta adotiva.

Ali o suor e a lágrima aspergem 
sobre cada buraco já úmido...
Cheiro de terra que nos sobe ao nariz,
quando a liberdade está perto o bastante
para o toque de prazer impoluto.

Eu queria em mim essa estrutura férrea 
e esse balanço. Quando a sordidez dos ventos 
desfolhassem a copa das velhas árvores,
quando o murro do raio estalasse um urro,
no meu corpo sólido haveria
a substância do amparo seguro.

Por fim, já calejados corpo e alma,
no entardecer um blues, regar as plantas 
que antes eu quis duas, agora mais de trinta 
desbotando flores ordinárias - sem poemas,
só a vida quase concluída,
que demanda ainda o acabamento
feita e imperfeita...

Por enquanto mentenho o trabalho que invento
perscrutando a areia lavada,
colecionando pedras para enfeitar substratos.

18 de set. de 2023

Um jardim esquecido

Um jardim esquecido?
Melancólica pintura 
onde existe e não se vê 
uma pobre sepultura.

A morte real é o olvido.
A vida real é a procura.
A única certeza é o porquê
da dúvida futura.



8 de set. de 2023

Carta V

Olá, querida. Escrevo-te outra vez desta alcova enfeitada de múltiplas sinapses. Reflexivo fico a remoer o sentido da sua bondade. Não sabes, mas és inexistente! Mesmo propícia ao toque, és a imaginação provável da persona que se evadiu dos contos angelicais. 

Acompanho daqui os feitos sublimes do teu intelecto. Que bençãos tuas mãos, quando disforme meu corpo contorcia cada músculo, quando era adicto de um prazer desumano, a cabeça em golpes descontrolados, as manchas do impacto da culpa nas paredes acostumadas ao silêncio, ao vazio do espaço.

Que milagre tuas mãos. Quando o desejo de romper com a ordem levanta a horda de poetas cadáveres elusivos. O convite para dança, o contágio da música de Kali. Eu que não sei dançar, arrisco?

Nunca poderás me perdoar, pois eu duvido. Sonhar-te real sob a abóbada celeste é dolorido. Tu, encrustada do que me foi negado, não compreendes quão grave é a maldição desse estado. 

O quanto ainda pretendo lamentar enquanto a vida derrama sobre lábios preteridos o mel ideal dos sonhos? 

Que horror as suas mãos de acalento enquanto anseio o destino punitivo onde alimento meu adorável monstro.

Perdem-se de vista 
os dias macilentos,
e a pós modernidade
compõe monumentos...

Suposta liquidez 
que hábil nos afoga,
onde o mundo é propício 
para aquele que joga.

Evade a nado raso
o resquício da essência,
a solidez da partícula,
a lótus da consciência...

Eu olho? Que desencontro!
Sou aquilo que ignora;
um protótipo de intento;
um agora fora da hora....